Rangel Alves da Costa*
Certa vez ouvi de um sertanejo lá da minha
terra – Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, no Sertão Sergipano do São
Francisco-, que se o homem não souber domar o tempo não restará nem pó para
contar a história.
Hoje sei por que ele tem razão. A história é
eterna, se perpetua, caminha no seu passo envelhecendo tudo. E desse passado se
alimenta para continuar existindo. E o homem que não souber fazer parte desse
ciclo nem lembrado será.
Sou filho de um sertão de história tão rica
que ninguém jamais duvidaria que algum dia ela pudesse cair no vão do
esquecimento. Mas basta olhar para trás e ver o quanto já envelheceu demais que
ninguém sequer se dá ao trabalho de lembrar.
O gado chegando pelo rio, as fazendas se
formando por ali, o homem entrando na mata, desbravando tudo, construindo
casebres, povoando, criando a colonização sertaneja. E esses primeiros
desbravadores fincaram a raiz familiar que se fez grande por todo lugar.
Os sobrenomes de família que se tem hoje,
toda uma linhagem parental e consanguínea, surgiram daquelas raízes primeiras,
nascidas das entranhas da terra árida para ir formando pomar e jardim, brotando
até hoje no sangue da meninada que nem sabe a razão do seu sobrenome.
Sobre aquela terra primeira, de natureza
portentosa ainda que no entremeado do sol escaldante e do pingo de chuva, não
só o homem fez moradia e passou a construir a história humana do lugar, como se
viu forçado a caminhar reconstruindo sua própria história, segundo as
exigências do tempo.
Agraciando-o com a coragem e o destemor,
caracterizando-o antes de tudo como um forte, o passar do tempo lhe foi
exigindo que desse provas dessa força para vencer os desafios que lhe seriam
impostos. E tantos foram que o sertanejo nunca viveu um só dia sem lutar para
alcançar o dia de amanhã.
E a essa luta pela sobrevivência foram se
juntando outras lutas, verdadeiras guerras, batalhas contra injustiças e pela
fé, enchendo o chão sertanejo de marcas que não poderiam jamais ser esquecidas.
Cangaceiros, jagunços, padres, coronéis, beatos, volantes, uma porção de gente
que se diferenciou na história pelas atípicas ações.
E tudo isso, a batalha de Lampião contra o
mundo, o fanatismo do Conselheiro, a política religiosa do Padre Cícero do Juazeiro,
parece ter existido num tempo muito distante ou simplesmente tido como alguma
fenômeno fantástico e fruto da inventividade do povo. E simplesmente porque os
de agora não conhecem ou não procuram conhecer a história do seu próprio povo,
de seus antepassados.
O descaso com a história é bem parecido com o
desinteresse com as raízes familiares. Infelizmente, os mais jovens imaginam
que família se resume, no máximo, desde os avôs aos pais. Muitas vezes apenas
aos que estão vivos. Por consequência, não há a mínima preocupação em conhecer
nada sobre os pais dos seus avôs, os pais destes, e assim por diante.
Tal contexto de desinteresse pelo passado
familiar traz consequências gravíssimas para o conhecimento como um todo. Ora,
a família é fruto de um lugar, e este de uma gênese histórica, de todo um
complexo de acontecimentos que tornou possível o surgimento tanto do lugar como
da raiz parental.
Se houvesse algum interesse, o jovem saberia,
por exemplo, que o seu bisavô foi figura importante na fundação do lugarejo,
ali se estabeleceu vindo de outras terras, casou com moça de outra família, e
nisto o primeiro passo para o nascimento do pai de seu pai, de seu pai e do
próprio. Lançando esse olhar buscaria compreender o tempo distante que lhe
permite o agora.
Verá o que o que se tem hoje surgiu no bojo
de realizações passadas, sentirá que o presente não se explica sem olhar o
passado, saberá que na outra ponta da linha do tempo está ainda presente o seu
tempo presente. E o mais importante: o seu não esquecimento pelas gerações familiares
futuras dependerá desse eterno olhar para trás.
Pensar diferente seria jogar sombras na
história, ainda que ninguém consiga viver sem o seu passado. E o passado também
está presente no caráter, na aptidão, na honradez, na força da luta. Não mero
acaso quando alguém diz que os frutos de raízes profundas tendem a ser mais
vistosos e apreciados.
Não se pode, ademais, romper com os laços
históricos, as veias familiares nem com o próprio berço de nascimento. Por mais
que o homem se distancie de suas raízes, ainda assim tem uma origem e um
percurso de vida. E toda vez que reabrir seu baú ali encontrará sua própria
feição naquilo que está sendo esquecido ou que nem sabia existente.
Assim, não basta um nome, uma identidade, um
endereço. A exata identificação do homem sempre se dá de outra forma, que é por
meio de seu histórico, de seu percurso desde sua raiz. E não raro seja mais
conhecido e valorizado pelo que traz de linhagem que mesmo pelo apresentado na
feição de momento.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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