Rangel Alves da Costa*
Canto a cantiga da terra, pois além de ser
dela o barro da criação, também sobre o seu leito se estende todo caminho e
destino, toda pujança da vida, o ventre da semente e do grão, a esperança espalhada
na sua raiz. Sobre sua tez a flor e o espinho, a pedra como luta de sempre, a
curva como alerta e cuidado, o seu calor abrasando a existência. Terra daqui e
terra de lá, de meu chão sertanejo de veredas e sacrifícios, mas uma mãe
cativante ao alimentar os seus filhos.
Não canto apenas a terra por onde os solados
caminham para sobreviver. Não canto apenas o leito virgem, semeado ou
devastado. Não canto apenas os braços abertos que acolhem moradias, currais,
pastagens, plantações. Canto a terra e suas entranhas, suas veias e seus olhos
que seguem seus caminhantes. E sempre hei de dizer que gosto tanto desse chão
que piso que viveria com a alma nativa carregada dessas marcas por toda nuvem
onde possa estar.
Árida, como é a doce e terna terra da minha
aldeia, massapé, como também há por lá, ou mesmo barro batido, chão coberto de
ponta de pedras e espinhos, lamaçal quando a chuva cai para alegrar a vida,
tudo é leito e berço por onde se trilha a vida. Terra bruta, forte, valente,
que empoeira no passo ligeiro do alazão. Terra amarela, vermelha, chão
esturricado, tudo poeira na estrada, mas sempre terra, sempre chão, sempre
caminhos abertos.
De manhãzinha a lavadeira desce o barranco
com cesto cheio na cabeça e vai cantando enquanto olha por onde pisa; o
vaqueiro acostumado com o cheiro do estrume deixa tudo secar sobre a terra e
depois espalha novamente sobre o chão do quintal que é pra horta verdejar; o
carro-de-bois vai cantando lentamente seu cantar gemido, enquanto o carreiro
segue adiante abrindo caminho sobre os garranchos para a sobrevivência passar.
Cuidado com a curva, cuidado com a moita e o bicho escondido na toca.
Sob sol e chuva o lavrador revira a terra,
semeia, aduba de esperança e deixa o chão prenhe a vingar; o jardineiro acordou
cedinho e ouviu da roseira que o chão está muito seco para que suas filhas
nasçam sedosas, cheirosas para os enamorados; o limpador da praça de outono
todos os dias se espanta com a terra completamente recoberta pelas folhas
caídas das árvores. E quando mais varre o chão, mais passa o gadanho colhendo
tudo, mais a terra fica ocre, amarelada, marrom, das folhas que caem e ficam se
movendo, querendo voar.
De lado a lado tudo é meu, numa distância que
os olhos nem podem enxergar. Há muito que sou dono de tudo, latifundiário por herança,
senhor de tudo que nela cresce de onde estou até onde você nunca estará. Não
tenho um só quintal ou um palmo de chão, mas tenho tudo que meus olhos desejam
ter, pois o que vou plantar e colher só nasce nessas ilusões que a gente tem de
ter muito, pois sobre tudo que está seco e desolado agora crescerá um trigal
que de tanto pão e tanta vida que dará, um dia afastará de vez a fome do mundo.
Sei que a terra tem tantos donos que se cada
grão fosse destinado aos seus senhores, ainda assim somente o pó para
satisfazer a ânsia de ter. Milhões de hectares de um só senhor não significam,
contudo, que este tenha um só pedaço de chão. O sentido de posse ou domínio
apenas satisfaz o ego materialista, mas não o espírito que deseja sentir o
fruto brotando. Nenhuma terra é de valia se nela nada frutificar. E tão rico é
o seu ventre que se compraz enraizar apenas com o grão trazido pelo bico do
passarinho ou pelo vento semeador. E na desolação vai brotando aquilo que ali
ninguém imaginaria encontrar.
Silenciosa, quieta, solenemente fixada no seu
chão, a terra não diz nem que sim nem que não, nunca demonstra o que acha dos
destinos ou desatinos sobre si impostos. Mas não se esquece de cobrar o preço
pelas incoerências. E de repente seu
brado raivoso. Sua voz já tanto cansada de ser transformada, desmatada,
queimada, destruída, se abre num vozeirão. E que voz a bradar nas enxurradas,
nos montes que desabam, nas encostas que se transformam em mar de lama e descem
engolindo tudo, nos campos que de tão devastados não engolem mais a água e tudo
vai escorrendo sem direção.
A terra vermelha de sol e a terra vermelha de
sangue. Na beira da estrada há uma bandeira vermelha dizendo que por ali estão
pessoas que precisam de terra para nela trabalhar. E justo que se exija pedaço
de terra para plantar, colher e sobreviver. Mas não é justo que tornem um
direito social e humano num meio abusivo e ilegal, através da semeadura da
ameaça, do terror, da violência, da destruição. E desses conflitos o sangue
jorrando onde deveria ser fincada uma bandeira de paz.
Foram-se os tempos dos descomunais
latifúndios, das terras de eréu, das terras de ninguém. Atualmente, o fim
social da propriedade não mais permite que as terras permaneçam sem uso nas
mãos daqueles que apenas as possuem sem o devido aproveitamento. Mas também marcou
o início do desaparecimento de muitas espécies de vegetação nativa, de animais
e mananciais. Sem as grandes matas, sem o refúgio da flora pujante e
acolhedora, não há como pensar em sobrevivência de tantos seres e espécies. Exemplo
maior disso se verifica com o quase total desaparecimento do preá nas terras
sertanejas.
Há uma cruz na estrada por cima da terra, por
causa da terra, na luta pelo chão. Há também uma vereda aberta na terra que
leva a um mundo que poucos conhecem. E lá dentro, no meio da mata, o velho
senhor da esperança, o catador de cada grão que pisa e se reconhece no chão,
reúne suas últimas forças para perguntar se ainda restam os sete palmos de
terra onde repousará no momento seguinte. Ou qualquer dia, com outro nome.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Simplesmente, marvilhoso o seu texto.
Perfeito!...
Um abraço, Élys.
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