Rangel Alves da Costa*
Não consigo imaginar como seria viver numa
dessas metrópoles onde praticamente não se avista o céu, não há chão para se
pisar ou vizinhos para um proseado. E mais, creio que seria impossível viver
num lugar onde a lua já nasce escondida e percorre a noite entre sombras, não
há manhãs com janelas abertas e muito menos quintais. E triste de um povo que
não reconhece mais um canto passarinheiro.
Moro em Aracaju, uma capital mediana, onde
muitos dizem que a feição de cidade grande ainda não chegou, mas ainda assim já
são muitas as consequências do progresso. Os grandes edifícios ainda não tomam
conta das paisagens centrais nem as alturas das nuvens estão sempre tomadas de
fuligens enegrecidas. Mas não há mais o vento soprando diretamente da barra
como noutros tempos, edifícios suntuosos se acumulam por toda margem das águas,
o caos urbano vai tornando a cidade pesarosa.
Cidade antes verdejante, com árvores
espalhadas pelas ruas e avenidas, contando também com praças aconchegantes,
hoje pouco se tem disso tudo. E o que se tem agora é de cortar coração. Os
parques nunca foram devidamente conservados e a maioria dos habitantes sequer
sabe como ter acesso, as praças praticamente abandonadas, as ruas desapossadas
de seus moradores. Eis que o trânsito aracajuano é um dos mais terríveis e
perigosos que possa existir sobre a terra. Nem pelas calçadas as pessoas estão
em segurança.
Um dia haveria de ser assim, mas a verdade é
que houve um rompimento voraz entre a cidade de aspecto e clima interioranos e
esta que forçadamente se moderniza. Logicamente que aos poucos desapareceriam
as ruas das vizinhanças, os arvoredos sombreados onde os velhos amigos se
encontravam, as calçadas festivas pelas comadres se reunindo para falar da vida
própria e muito mais da dos outros. Os meninos correndo atrás de bola,
brincando soltos na vida, logo serão avistados somente em fotografias.
Infelizmente, o presságio do real, do visível.
Houve um tempo do leiteiro deixando o leite
na porta, da vendedora oferecendo queijo de quintal, galinha de capoeira, doce
de coco e bolos de muitos sabores. Houve um tempo de janelas e portas abertas,
de cadeiras nas calçadas, de pessoas passando acenando um bom dia ou boa noite.
E também um tempo de quintais, de pomares, de ervas medicinais, de animais de
estimação, de cajueiros, papagaios e varais. Obedecendo a lógica do progresso,
tudo foi sendo transformado e agora resta somente a nostalgia de um tempo onde
viver era infinitamente mais prazeroso.
Atualmente é o tempo do medo, da violência,
do assombro, da preocupação acerca de tudo. Ao entardecer ou anoitecer poucos
ainda se atrevem a colocar cadeiras nas calçadas para se refrescarem do calor
da luta, quase ninguém faz mais caminhadas pelos arredores do bairro onde mora,
até mesmo as portas e janelas não são mais abertas para a entrada de um sopro
bom. Logo estranhos passam, olhares desconhecidos começam a rondar, passos se
aproximam para tirar o sossego, quando não ameaçam tirar o patrimônio e a vida.
Ruas de pessoas desconhecidas, de caminhantes
embrutecidos, arrogantes, parecendo avistar inimigo em qualquer um que esbarre.
Ruas dos carros que passam velozes, violentos, amedrontadores, e das
motocicletas que de repente surgem como se sopradas por turbilhão. E triste de
quem estiver à sua frente, pois o respeito do motoqueiro para com o trânsito e
os pedestres é o mesmo que o do fugitivo com a polícia no encalço. Simplesmente
vai passando por cima de tudo, machucando, ferindo, causando danos
irreparáveis.
Diante do jardim que se transformou em
lixeira, do sossego que se transformou em constante temor, não há como não
sentir saudade dos tempos idos. Mesmo que digam que o passado já cumpriu seu
destino ou mesmo que o saudosismo nada mais é do que se esquecer de abrir as
portas para o tempo novo, ainda assim ninguém pode negar o bem que faz o
simples fato de saber que as cidades, as pessoas e as situações, um dia foram
muito mais humanas e acolhedoras. E somente assim perceber que o homem e a
cidade de hoje não foram sempre assim tão insensíveis e vorazes.
O tempo não volta, nada mais será como antes,
é verdade. Mas nem tudo está perdido. Felizmente a lua ainda é avistada
imponente nas noites aracajuanas, o céu azulado é festa no olhar durante o dia,
alguns vizinhos ainda se arriscam ao anoitecer pelas calçadas. Nos bairros mais
distantes ainda se encontra um aspecto interiorano, de ruas sem asfalto e
meninos desnudos correndo de canto a outro, mas pela pobreza e o esquecimento
dos poderes públicos, e não porque seja bom viver assim.
Somente nas distâncias, como na região
sertaneja de onde eu vim, ainda é possível encontrar algumas belezas que tanta
falta fazem na cidade grande. Ali ainda pedaços intocados da natureza, ali a
lua tão imensa e bela a cada anoitecer, os quintais quase se unindo à mata e
cheios de plantas, arvoredos, bicho ciscando no chão, poleiros armados ao
redor. As roupas esquecidas nos varais e amanhecendo úmidas pelo sereno da
noite. E logo a manhã, aquela janela aberta que é mais que um chamado à vida,
mas a própria razão do viver.
Quem dera ter sempre luas, quintais e manhãs.
Não apenas avistar algum clarão lá em cima, não apenas abrir a porta de trás e
avistar alguma planta em pé, e não somente despertar porque amanheceu. E sim
ter a lua imensa sem que os edifícios impeçam sua visão, ter quintais sem que o
cimento petrifique o sublime, ter manhãs sem que a janela aberta tudo traga,
menos o sol.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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