SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 10 de setembro de 2014

LUZ DE CANDEEIRO


Rangel Alves da Costa*


Um dia cansado, um dia sofrido. O sol escaldante, suor pelo corpo, as marcas da sina. E vem o entardecer, a fornalha se deita, o calor arrefece, sopra uma brisa encantada. Logo mais o sombreado, a escuridão ao redor, a lua descendo e as famílias recolhidas nas suas moradias.
Uma casinha distante, erguida no barro viscoso e no cipó invencível. A pobreza na sua face e feição, o mesmo rosto em muitas vidas no sertão. No negrume da noite, na casinha pequenina, quase despercebida é a moradia. Mas se a porta é aberta logo se sente a presença de vida, logo se percebe que há luz, sombras, réstias, pessoas que andam ou se aquietam.
Ali a vida avistada pela luz do candeeiro. O que um dia foi alumínio, noutro dia foi lata, acabou sendo trabalhada, moldada e soldada para se transformar num bico luz. Sim, o bojo para o gás e o pequeno bico. Dali desce o pavio de algodão entrançado, também cuidadosamente trabalhado, até encontrar o gás lá pelo fundo. Basta a umidade para o pavio inflamar, e basta um fósforo riscado para o pavio flamejar e iluminar a escuridão sertaneja.
Assim o candeeiro, a lamparina, o bico de luz, o pavio embebido de gás que ilumina a vida desde os tempos mais antigos. Hoje a maioria das moradias distantes, quase esquecidas nas brenhas sertanejas, já recebe as benesses da luz elétrica, bastando um toque e a lâmpada enche a noite de dia. Mas muitas ainda permanecem sob a luz do candeeiro. E na noite sertaneja, de breu sem vaga-lume, a existência só é percebida quando a porta é aberta e o amarelado se espalha daquela pequena chama.
E assim desde muito tempo. As sombras da noite chegavam e a penumbra parecia esconder o sertão. Quando tudo começava a escurecer de verdade é que a mão surgia com palito de fósforo aceso ou chama de graveto para acender o candeeiro. O gás era pouco, o pavio já muito curto, então a luz amarelada se espalhava somente quando quase não se enxergava mais nada.
Quando a casa era pequena, de no máximo três vãos, um só candeeiro bastava para iluminar a vida noite adentro. Geralmente colocado num local mais elevado, de modo a expandir a luz, parecia uma pequena lua em chamas, bailando ao sopro do vento que entrava pelas frestas da porta. Tinha gente que dizia avistar chamas fagulhando por dentro dos matos, mas eram os seres encantados da noite, o fogo-corredor, a mula-sem-cabeça, as visagens de outro mundo.
Mas no casebre a luz singela, trêmula, lançando seu olhar e sua cor sobre toda a vida ali existente. As mãos rudes debulhando milho ou descaroçando feijão de corda, pregando um botão ou fazendo um remendo na roupa antiga. Quando a agulha caía e os olhos cansados não conseguiam avistá-la pelo chão, então o menino trazia o candeeiro pra mais perto e tudo ficava mais fácil de ser resolvido.
O quarto não precisava de candeeiro. Quando muito uma vela acesa ao pé do velho oratório, mas apenas por breves momentos, pois ninguém podia se dar ao luxo de ter aquela chama de fé guarnecendo o oratório a noite inteira. E quando faltava gás no candeeiro, outra coisa não restava fazer senão deixar os santos na escuridão.
Aquela luz amarelada, suavemente ondulando, acabava dando um aspecto entristecido aos interiores empobrecidos das residências. Os meninos, cansados das reinações do dia inteiro, adormeciam logo e somente os mais velhos permaneciam nos afazeres próprios da noite. Não havia muito que conversar, por isso mesmo que a mulher ficava do lado de dentro e o homem do lado de fora da casa.
Do lado de fora, caminhando de lado a outro debaixo da lua ou na escuridão total, ou mesmo colocando gravetos para alimentar a fogueira acesa para afastar a frieza ou espantar os animais noturnos que gostavam de sorrateiramente se achegar das beiradas de barro. Também para iluminar a estadia dos amigos quando estes apareciam para um proseado. E também um gole de pinga.
Se não havia fogueira, somente o candeeiro como sinal de luz debaixo da lua e na escuridão dos casebres. Mas nem sempre permanecia aceso a noite inteira. O último que fosse deitar soprava o pavio e deixava tudo no breu. Mas por breves momentos, pois logo a madrugada e sua primeira luz entrando pela porta aberta. Eis que bem antes do alvorecer o sertanejo já levanta para os afazeres do dia. E logo vai abrir a porta para abraçar seu sertão.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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