Rangel Alves da Costa*
Quanta diferença na realidade vivenciada
agora por Querêncio Badaró, quanta transformação daquele seu mundo para este do
presente. Mas ele não sabia ou fingia não compreender. Talvez nem se desse
mesmo conta de que vivia agora numa realidade muito diferente daquela onde era
tido e devotado como o todo-poderoso daquela região. Coronel de patente forjada
no compadrio, não só dono de meio mundo de terras como da vida da maioria
daquela gente tão humilde. Por isso mesmo também dono de curral eleitoral,
puxando pelo cabresto quantos votos tencionasse oferecer ou negociar com os
candidatos de então. E cobrava caro por isso.
Moldura medonha aquela, envolvendo um retrato
embrutecido de mando e submissão. Tempos de carcarás, gaviões e urubus rondando
a penúria do povo, tempos de mães-da-lua e rasga-mortalhas anunciando a desdita
da vida. O povo pobre, tão frágil e desvalido quanto a terra seca em que
fincava suas esperanças, sentia-se esmagado como folha esturricada sob as
botinas carrasquentas do poderoso. Desdita da vida que coloca o medo de olhos
abertos diante do indefeso. Sina de calango rastejante, de lagartixa sem rabo
roçando a barriga na pedra quente da arrogância e da cegueira da igualdade do
outro. Mas assim havia de ser para cumprir o destino de um mundo que vai
caminhando com o mais fraco levando nas costas o mais forte.
Que tempos tristes aqueles da dependência em
tudo, da silenciosa sujeição, da subserviência em troca do pão. O couro magro
não era rasgado pela chibata nem o tronco era mais usado como demonstração de
arrogância e atrocidade, mas a escravidão era a mesma. Ora, é o senhor quem faz
o escravo pelo trato que dá ao homem. E Querêncio Badaró, se não violou pela
cor desonrou pelo trato. Submeteu pela dependência mantida, subjugou pela
preservação da miséria. Era do seu interesse que fosse assim. Por isso ao povo
nada além daquilo que o tornasse cada vez mais dependente do seu senhorio.
Nunca quis ser candidato a nada, pois se
sentia soberano naquela região e é baixeza para um rei exercer um reles mandato.
Daí que fazia do seu poder uma forma de atrair cada vez mais poder. E tantas
vezes assim conseguiu. Sua força local era acrescida em muito pelo número de
votos que dispunha e podia despejar do lado que bem desejasse. Mas vivia
atrelado a grupos de poder político que guarneciam de benesses seu império. A
ele tudo, ao povo nada. E o povo em si quase não existia, a não ser na hora da
abertura da cancela do curral para ser conduzido encabrestado em direção às
urnas. E voto garantido, no número contado, segundo o prometido. Assim a força
do coronel, do dono do povo, do voto e do mundo.
Contudo, quando seus compadres lá de cima
foram perdendo o poder, pois os seus votos já não eram somados com outros
currais, então o coronel foi perdendo sua força de mando. Não recebia mais os
meios necessários para manter os assistencialismos e não desejava tirar do seu
bolso um só tostão para uma cesta de alimento, uma consulta médica, um par de
óculos, dois metros de chita. Tudo fazia para preservar seu curral, mas não oferecendo
nada mais que a proteção do seu nome. Mandava soltar, mandava prender, prometia
dar um jeitinho numa situação escabrosa, enviava bilhetes e recados, e assim ia
ludibriando os eleitores.
Com o passar do tempo, mesmo ainda se achando
dono do mundo, sabia que não tinha nem mais um terço dos votos que noutros
idos. Também sabia que nem naqueles que ainda permaneciam em seu curral, pois
ainda na dependência do trabalho e do ganha-pão, podia mais confiar. Tudo isso
lhe causava uma aflição terrível, um sofrimento indescritível. Nada mais triste
e doloroso para quem se acha poderoso demais de repente começar a sentir que os
novos tempos estão lhe minando as forças. Contudo, o mais terrível foi perceber
que já não era mais visto como no passado pelos seus próprios conterrâneos, eis
que agora apenas como pessoa influente e de muitas posses, mas um ser humano
qualquer. Não aceitava que fosse assim, precisava manter seu coronelato. E a
qualquer custo.
Então o velho coronel, enquanto se balançava
na cadeira acostumada ao mando, somando seus restos para ver se ainda lhe
restava poder, teve uma ideia que confrontava seu tino de homem de palavra, mas
que era a única forma de continuar sendo reconhecido pelas elites políticas e
candidatos: continuaria oferecendo o curral de porteira fechada, com tantos ou
mais votados contados, coisa de ser provado na urna. Quer dizer, negociaria a
quantidade de votos que sabia não mais possuir. E negociata política fácil de
ser realizada, pois aos candidatos interessaria apenas tratar com o dono e não
olhar no olho da boiada. Pagava-se pelo curral fechado sem precisar sentir o
cheiro ruim do bicho eleitor.
Mas o velho Badaró só conseguiu enganar uma
vez. Vendeu mil votos e nem cinquenta ruminantes apareceram nas urnas. Mas
assim haveria de ser. A porteira já estava aberta desde muito e agora cada um
dos ex-encabrestados cuidava de valorizar o seu voto ou mesmo vendê-lo a
qualquer preço. Mesmo assim uma desonra para um homem que ainda acreditava na
sua fama como garantia de eleitores. Era o triste fim do poder do voto de
cabresto, do curral eleitoral, da insidiosa negociata. E fim tão trágico que
foi afetando o juízo do ex-dono de curral e do mundo.
A partir de então passou a ter alucinações
terríveis, delírios enlouquecidos. Aboiava alto chamando o povo para o curral,
gritava mais alto ainda chamando candidato para comprar tudo de porteira
fechada. E depois implorava para que lhe levassem o cabresto, dizendo choroso
que precisava levar o seu rebanho pra votar.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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