Rangel Alves da Costa*
Foi lá em minha terra que ouvi essa história.
Muitas eu já conhecia a respeito, mas especialmente essa me deixou quase
presente diante daquela medonha realidade, e acima de tudo quando no desfecho o
velho sertanejo ajuntou: “E o coiteiro sofreu, agonizou, mas silenciou até
morrer”.
Histórias e estórias, causos e proseados
dando conta do dia a dia do coiteiro, daquele que ajudava na estadia do bando
de cangaceiros quando de passagem pela sua região, ainda são espalhadas como
verdades absolutas e fantasias exageradas pelos sertões adentro. Revendo a
medida e o peso, equacionando as possibilidades, o que ainda resta são páginas
de honra, amizade, destemor e sofrimento.
Para ser confiado por Lampião, conhecendo o
paradeiro do bando e se tornando emissário para quase tudo que dissesse
respeito ao mundo exterior, além caatinga, o coiteiro precisava ser homem
honrado, reconhecido pela sua postura de fidelidade. Daí também a amizade, pois
os contatos precisavam ser feitos na confiança de verdadeiros amigos e
confidentes. E o destemor para cumprir com as exigências do bando, adquirir e
transportar o encomendado, e sem medo de ser perseguido, tocaiado ou
aprisionado para dizer onde a cangaceirama estava tocaiada.
Mas foi esse destemor que tanto sofrimento
causou ao sertanejo que um dia se fez coiteiro por achar justa a guerra
cangaceira contra a volante e o mundo. Contra o mundo sim, pois num dado
momento do cangaço já não se podia perceber quais os reais objetivos daquela
guerra medonha, já não se conhecia o que Lampião desejava alcançar. Então tudo
podia justificar a luta pela luta, até mesmo porque não lhe restava saída
honrosa senão morrer lutando. E nem isso conseguiu.
O coiteiro foi coadjuvante importante dessa
luta, principalmente do cotidiano
cangaceiro, pois conhecia as necessidades, os hábitos, os temores e até
o percurso seguinte. Indicava caminhos mais seguros e alertava sobre os olhos
escondidos na mataria. Não só providenciava alimento como informava sobre a
presença da volante na região, não só levava linha e agulha como servia de
mensageiro entre o Capitão e os coronéis e poderosos da região. Por isso mesmo
que era tão importante ao bando.
Não só importante como possuidor do destino
de cada um em sua boca. Bastava abrir o bico, ou dar com a língua nos dentes
como costumeiramente se diz, para dizer onde era o coito naquele momento e toda
a cangaceirama corria perigo. E não faltava gente querendo saber, desde alguns
sertanejos que não gostavam ou temiam Lampião, ou ainda outros que logo
correriam para segredar aos ouvidos da volante. Mas principalmente esta, que
tudo fazia para obter qualquer pista acerca do paradeiro daqueles revoltosos das
caatingas.
E a história relata casos de atrocidades
descomunais cometidas pelos soldados da volante quando em busca de informações
acerca do bando. Bastava colocar os pés nos arruados e queriam a todo custo que
os matutos dissessem sobre o paradeiro do Capitão. E para tanto ameaçavam,
prendiam, batiam, açoitavam, sangravam e até matavam. Muitos, mesmo sem nada
saber, porém temendo o pior, cometiam o erro de indicar um lugar qualquer. Então
eram forçados a seguir com os algozes e encontrar a morte mais adiante, vez que
as informações não se confirmavam.
Contudo, acaso a polícia ao menos imaginasse
que aquele ou aquele outro servia ao bando como coiteiro, então a situação se
transformava num terror marcado pela lentidão do suplício. Logo começava a
caçada e assim que colocasse as mãos no sertanejo começava o sofrimento. Mesmo
que não tivesse qualquer certeza do conluio entre a pessoa e o bando, ainda
assim o pobre homem era levado para um lugar mais afastado, até mesmo para
perto de seu casebre e de sua família, e então começavam as torturas.
E foi uma dessas situações que ouvi daquele
velho citado acima, relatando o episódio como se o tivesse presenciado. Eis
suas palavras descrevendo a ação:
“Amigo de Lampião não merece viver, mas
parece que você tem mulher e filhos dentro daquele rancho ali, não é mesmo?
Então, ainda que ver sua mulher e seus filhos? Então diga, diga logo aonde é o
coito daquele miserável de Lampião, diga. Só pra saber que não tamo brincando,
então sinta essa ponta de punhal na sua costela. Tá sentindo dor? Pena que não tá
vendo seu sangue de verme escorrer. Amole aí o facão e baixe as calça dele...”.
Mas podia estraçalhar, cortá-lo todinho em
pedacinhos, que uma só palavra não sairia de sua boca. O verdadeiro coiteiro, à
moda da honra kamikaze, preferia morrer a revelar qualquer coisa que pudesse ser
vista como traição ao líder cangaceiro. Ao bando em si, mas principalmente a
Lampião, por quem devotava alentado respeito. Mas prosseguindo:
“Você sabe muito bem como bode morre,
sangrando pelo pescoço. Quer morrer assim? Fale logo seu fio da peste, diga
logo onde cabrunco tá Lampião. Não vai dizer não, então toma. Acenda uma fogueira,
vamo queimar ele vivo. Traga a família dele, anda. Você soldado, cuide de ir
logo sangrando esse cabra, mas devagarinho pra que termine de morrer na
fogueira, diante da família. Pela última vez, onde tá Lampião? Diga seu fio da
peste, diga onde tá Lampião...”.
E o coiteiro sofreu, agonizou, mas silenciou
até morrer. E não somente este. Muitos fizeram da honra seu pacto maior com o
cangaço. E tal fato, por si só, já demonstra que tal respeito tinha por
fundamento uma imensa consideração àquele mundo cangaceiro que hoje muitos não
querem nem desejam compreender. Ora, mas era o seu mundo. E ele também vítima
da opressão e das injustiças.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
2 comentários:
Caro escritor Rangel, você está me dando uma importante aula sobre a atuação dos coiteiros. Por experiência que tenho com os escritos de seu pai - o saudoso Político e Escritor Alcino Alves Costa, sei que você (nascido nas Terras de Poço Redondo, região forte em matéria de cangaço nos velhos tempos), é profundo conhecedor do assunto, ainda que hoje, cuidando da vida profissional na capital do Estado de Sergipe. ÓTIMO TEXTO DR. RANGEL. PARABÉNS MESMO.
Antonio Oliveira - Serrinha-Bahia.
Excelente! Excelente! Excelente! Vale muito mais do que excelente 100 vezes. O escritor Rangel sabe muito bem escrever e gosta. Parabéns! Parabéns! Parabéns pelo seu fantástico trabalho e por outros também.
José Mendes Pereira
Mossoró - Rio Grande do Norte
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