Rangel Alves da Costa*
Ontem, sábado, treze de setembro, começou
serenando em Aracaju. Depois o sol apareceu, as nuvens novamente tomaram os
espaços e a chuvarada incessante resolveu cair do início da tarde em diante.
Não uma chuva forte, de trovoada ou pingos grossos, mas numa constância que se
derramava farta pelas biqueiras.
Já ao entardecer, sem comércio aberto ou
veículos velozes tomando as ruas, o asfalto se deixava molhar, se lavar e
escorrer sem pressa. Poucas pessoas passando com seus guarda-chuvas, mais
apressadas para chegar aos destinos do que mesmo fugir da molhação. Conheço
alguém que chega a usar guarda-sol em dias mais ensolarados, mas se nega a usar
guarda-chuva ainda que debaixo de temporal. O motivo: reencontro com a
infância.
Neste sentido, diz que basta sentir a chuva
caindo e molhando tudo para recordar sua meninice, suas brincadeiras e
correrias debaixo das chuvaradas de antigamente. Num tempo de ruas sem asfalto
ou pedras cimentadas, com o chão duro ou no barro se fazendo de rua e caminho,
bastava cair pingo d’água e os lamaçais e as poças iam se formando por tudo que
era canto. Então o menino nu, contagiado pelo aguaceiro, passava correndo por
cima de tudo em busca das biqueiras grandes para a grande festa da idade.
Eu também já fui menino nu sertanejo,
traquina que só o cavalo da ema, correndo festeiro pelas ruas molhadas do meu
lugar. Bastava encontrar uma calçada de cimento liso e me jogava de barriga até
rolar por cima da água ao final do percurso. E repetia sempre. E depois
brincava de laçar pingo, de peneirar gota d’água, de espanar com as mãos o
gotejamento que ia caindo. E de repente já estava correndo na direção do
riachinho para ver se ouvia o barulho da cheia despontando lá em cima. Mas ela
costumava chegar pela madrugada.
Toda uma geração sertaneja teve uma meninice
assim como a minha, desandando pelo mundo logo que toró sem relâmpago e trovão
começasse a cair. Correndo, pulando, festejando aquilo que era tão difícil
acontecer na secura sertaneja. E assim nessa euforia toda até ouvir um grito de
alguém dizendo que um pai ou uma mãe estava procurando o danado do filho com um
chicote à mão. E o traquina, que podia ser qualquer um de nós, corria, entrava
às escondidas pelo quintal e mansamente ia se entocar debaixo da cama, ainda
molhado.
Neste sábado, com os pingos caindo, eis que
me vi recordando tudo isso. No silêncio entristecido da tarde e nas sombras
molhadas da noite, quanto mais chovia lá fora mais eu me distanciava em
pensamentos. E mais ainda quando avistei no quintal um cano descendo do telhado
e jorrando igual biqueira grande. Juro que por uns cinco minutos fiquei apenas
olhando aquilo que me surgia como fotografia antiga. E por mais uns cinco
minutos fiquei na dúvida se ia tomar banho ali debaixo ou não. E de roupa e
tudo.
Pensei e pensei, cheguei a tirar a camisa
disposto e caminhar até lá. Mas depois resolvi que não tinha graça tomar banho
ali sem camisa, vez que só teria proveito se fosse com roupa e tudo. Sim, com
roupa e tudo, deixando tudo molhar, tudo inundar, encharcar e escorrer sem medo
de gripe ou de nada. Adulto não tem graça nenhuma tomar banho de chuva desnudo,
ainda que nos escondidos do seu quintal. A magia toda está se deixar molhar com
roupa e tudo, numa atitude de desprendimento com a realidade e as etiquetas da
vida.
Aliás, não há coisa melhor que fazer como
aquele amigo que abdica do guarda-chuva para sair debaixo de chuvarada. Sei que
poucos comungam da ideia, mas vejo como totalmente descabido que alguém procure
tanto se proteger da chuva quando está no seu cotidiano mais comum da vida, sem
roupa de compromisso ou por exigência profissional. Assim como as ruas lavadas
se renovam, parecem espelhadas pela molhação, também o ser humano necessita de
uma enxurrada de vez em quando.
Hoje, domingo, como diz a moça do tempo, está
no nublado, com chuvas no decorrer do período. Já choveu e já parou, mas na
iminência de muito mais. Mas espero que chova muito, bem forte. Preciso ir ao
mercado, mas só irei debaixo de toró, sem guarda-chuva. E no retorno vestirei
uma roupa enxuta para a biqueira que tanto me chama a relembrar os bons tempos
da vida.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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