Rangel Alves da Costa*
Muita gente transforma a percepção de Deus
num deus qualquer. Os termos são os mesmos, mas os sentidos não. Quando escrito
com letra inicial maiúscula, a referência que se faz é a de Deus criador, do
princípio supremo, do ser onipotente,
onisciente e onipresente. É o Deus da cristandade, do catolicismo.
Diferentemente ocorre se o termo utilizado se inicia por letra minúscula, então
a indicação é de um ser sobrenatural, de uma divindade criada por humanos e por
eles adorada.
Na Bíblia há uma clara diferenciação dos
termos, como em Timóteo 8, 5-6: "No
céu e na terra há alguns que se chamam deuses. Todavia para nós há um só Deus,
o Pai.". Também consta do livro sagrado acerca da existência de um único
Deus verdadeiro. Por consequência, outros deuses considerados como existentes
são tidos como ilegítimos. Deuses espúrios, porém acreditados e seguidos por
aqueles cuja crença lhes dá validade e sustentação. São, assim, deuses
ocasionais e que supostamente atendem às crenças ou necessidades espirituais de
grupos, geralmente invocando-os através de rituais.
Os argumentos gramaticais não são mais
importantes que a convenção estabelecida pelo povo. Assim, pouco importa se
“deus” com inicial maiúscula ou minúscula se o que se tem em mente é o ser
supremo. No mesmo sentido, tanto faz a inicial se o que se deseja representar é
uma divindade de culto pagão, uma entidade mitológica, um personagem
sobrenatural adorado em culto. Neste aspecto a questão se mostra induvidosa,
vez que mesmo os ateus e agnósticos sabem muito bem diferenciar a divindade
suprema da religiosidade cristã e as entidades pagãs.
Assim, o Deus do catolicismo é único, de
caráter monoteísta, não havendo como imaginar a existência de outros deuses supremos.
Mas os deuses, divindades, entidades e figuras endeusadas pelos pagãos são
muitos, e tantos quantos forem suas crenças. A mitologia grega é clara neste
aspecto, ali o reduto de deuses com diversos matizes e feições e atuando
perante os mais diversos aspectos da existência, como na guerra, no amor e na
agricultura. As religiões, os cultos e as seitas também elegem os deuses que
lhes dão sustentação. Sob a denominação de divindades, se expressam até mesmo
em animais ou plantas. Os maias, incas e astecas possuíam centenas de
divindades. Bem assim no hinduísmo, nas diversas mitologias e nas religiões
politeístas.
Não obstante tais distinções, o que se vem
observando dentre muitos é a veneração ao Deus criador dentro da mesma
perspectiva que alguns povos têm de seus deuses. Ou seja, não se considera a
supremacia de Deus enquanto Ser Supremo de tudo e sobre tudo, mas também como
um deus ocasional, surgido ao acaso de uma necessidade ou de uma invocação para
resolver um problema específico. Neste aspecto, o Deus do catolicismo vem sendo
considerado no mesmo patamar que os deuses pagãos.
Exemplos servirão para demonstrar tal
assertiva. Em muitas religiões, cultos e seitas, os deuses são geralmente
vistos como protetores de elementos específicos. Há o deus da chuva, o deus da
peste, o deus do destino dos homens, o deus da guerra, o deus da paz, enfim,
uma divindade para cada situação. E no seio da cristandade observa-se também
tal politeísmo na medida em que Deus é cada vez mais invocado não como um todo
protetor, mas aquele lembrado apenas quando surge, por exemplo, um problema de
saúde, uma instabilidade financeira, uma preocupação familiar, um aspecto
afligindo especificamente uma situação de vida.
Assim, a Deus aos poucos vai se imputando a
valia de um deus qualquer à medida que a lembrança do seu poder surge apenas em
situações pontuais. São as situações de vida, principalmente aquelas onde estão
presentes problemas e preocupações, que fazem com que Deus seja lembrado. Como
dito, nada muito diferente das seitas politeístas onde se invoca o deus da
chuva na época da estiagem, o deus da paz diante da ameaça de guerra, o deus da
cura perante um surto de peste. A única diferença é que dentre tais povos cada
deus possui uma denominação específica, enquanto o Deus da cristandade é um só.
E o Ser Supremo,
parecendo de serventia apenas para determinados instantes da vida, tido como
Deus do acaso, acaba transformado num deus qualquer. Assim tornado, sua
intercessão é invocada apenas ocasionalmente, não é presença viva e constante
no coração e na mente, não é certeza garantidora do guiar-se pelos bons
caminhos da vida e força maior norteando as boas ações humanas. E surge apenas
quando um fato inesperado que não possa ser suportado e resolvido pelo próprio
homem exige sua presença como salvação. Aconteceu algo de errado, logo diz “ai
meu Deus”; está precisando de alguma coisa urgente e diz “valha-me Senhor”;
quer implorar que façam alguma coisa e diz “pelo amor de Deus”; quer se
arriscar em alguma empreitada e diz “e que Deus Pai me proteja”.
Nesta
perspectiva de aproximação de Deus apenas diante de circunstâncias, a sua
presença na vida do ser humano é tão nula quanto a sua própria fé. Tenho a
convicção de que aqueles que reverenciam verdadeiramente o seu Deus têm-no como
causa maior da vida e da existência, reconhecem a sua presença graciosa em
tudo, e por isso mesmo sentem sua essência no espírito a todo instante. E por
isso mesmo não precisam estar por aí pronunciando o seu nome em vão perante a
conveniência do próprio homem.
É no
silêncio do coração que Ele grita e diz ser necessário porque o ser humano, por
mais forte que se ache, não passa de um acaso. O homem sim, este é acaso. Deus
é permanência e tudo!
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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