SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 25 de novembro de 2012

MIL SÓIS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Sou de uma terra, um lugar sertanejo, que mesmo na noite mil sóis povoam, cintilam, queimam paisagens e horizontes. Sol de maio, sol da tarde, sol em tudo, sol demais, que na dolorosa soma se chega aos mil sóis.
A lua, que teria seu lugar garantido noutro canto qualquer, no sertão parece só existir numa música famosa. Hoje já nem se canta mais luar do sertão. O sol vai rimando com tudo, desde o inexistente girassol à fornalha do arrebol.
Desde o amanhecer ao acordar no outro dia, passando pelo vagar sonhador e o madrugar abrasivo, o corpo queima suado, cansado, completamente tomado pelos mil sóis.
De janeiro a dezembro é assim, e isso de ano a ano, por vezes cinco anos inteiros. A retina do olho cimenta, o chão esturrica, a lama se torna numa dureza de ferro, e tudo por causa dos mil sóis.
Não há abrigo, telhado ou cobertura que os mil sóis não penetrem causticamente. A testa suada, o corpo pegajoso, a pele vermelha, tudo parece fogaréu ainda que à sombra de tantos sóis.
Sertão desmatado, plantas secas e derreadas, folhagens acinzentadas voando em arribação. O preá corre aos pulos, a lagartixa e os calangos saltitam de pedra a outra, a velha cabeça-de-frade parece que vai morrer. E só a força de mil sóis para atormentar tanto assim.
Mil sóis de longo percurso, de extenso caminho e história. Atormentou o Capitão Lampião e seu bando, afligiu o Conselheiro e seus fanáticos, fez com que Padim Ciço e Frei Damião rezassem missa para aplacar sua fúria.
De braços abertos, como estivesse confrontando a sanha impiedosa das secas, o mandacaru afia os seus espinhos para espetar os raios cortantes dos mil sóis. E a furiosa fornalha, talvez respeitando o símbolo maior do sertão, corta caminho e vai tocar fogo bem adiante.
Porque os mil sóis tocam fogo em tudo. Não é preciso que as labaredas subam nem a fumaça se espalhe no ar para saber que os tantos sóis estão transformando o sertão em cinzas. Basta olhar para cima, ao lado, ao redor, e logo virá a certeza.
As aguadas e tanques secaram de vez por causa dos mil sóis; o riachinho não corre mais, o bicho não encontra uma cacimba sequer por causa dos tantos sóis; as plantas secam e morrem, as pedras começam a delirar e o chão a fumaçar por causa de todos os sóis.
Os galhos mortos incendeiam, saem fagulhas das tocas, os labirintos se curvam, as veredas se abrem, os espinhos se escondem, as distâncias acinzentam, os desertos se põem a gritar, a bicharada se dana a gemer, e tudo por causa dos mil sóis.
O homem é valente, o sertanejo não se amedronta diante de nada, sai porta afora para enfrentar toda desdita, mas basta olhar para o alto e recuar. Não há nada a fazer, não há no que trabalhar, as esperanças se diluíram pela força de tantos sóis.
Pote com barro no fundo, moringa deitada no esquecimento, uma cuia rachada de sequidão, uma caneca sedenta jogada no barro. O menino era mais gordinho, a mulher tinha brilho no olhar, o homem até falava, sorria, brincava. Mas tudo silenciou, emagreceu, perdeu o brilho e a cor por causa dos sóis.
Ninguém precisa acender fogão, abrasar a olaria, pegar lenha pra fogueira, fazer labareda em garrancho. Não há o que cozinha, assar ou tostar, e se tivesse qualquer pelanca de boi ou toucinho de porco, bastava estender no varal. Mas com cuidado para os mil sóis não botar tudo a perder.
Dizem que não chove mais porque as nuvens incendiaram, não suportaram a proximidade dos mil sóis. A água derramada foi fervendo ao cair e antes de virar pingo se transformou em fumaça.
A fumaça espalhou-se, tomou conta do sertão inteiro. E hoje, além de um povo queimando de sol é também uma gente de olhos anuviados, cegos. Então chegam os políticos e vão guiando os cegos com suas promessas.
Meu avô já dizia que diante de uma promessa política é muito melhor ter a sina não de mil, mas de milhões de sóis.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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