SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 18 de novembro de 2012

ÔI DE CASA! (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


          No meu sertão é assim. Seja choupana ou casa de alvenaria, seja tapera ou bangalô, seja barraco ou casarão, pra se chegar à porta exige que se tenha formalidade. E cerimonial matuto já se viu, consiste no mesmo dizer para ser atendido, e geralmente com a costumeira resposta.
          Ôi de casa! Grita antes ou depois de bater palma. Ôi de fora, queira se anunciar que é pra ser atendido! Responde quem está lá dentro, ainda que saiba quem está do lado de fora pelo reconhecimento da voz. Mas de qualquer sorte o ato formal de chegada e recebimento está cumprido.
          Quando é um parente que chega, ou mesmo pessoa amiga e conhecida, o diálogo seguinte é geralmente curto. “Cuide de abrir logo essa porta muié de Deus, num vê que o sol tá em tempo de esturricá tudo!”. Apressa-se quem continua à porta.
          Do lado dentro, já se encaminhando para dar passagem, para abrir ferrolho ou cadeado, vem entremeando palavras: “Se avexe não fia de Deus, se avexe não. Pió quem num pôde chegar pruquê num teve perna pra se alevantar!”.
         “Se avexe que tô cum sede!”. “Traga moringa no bucho!”. “Tá breu de bicho aparecer”. “Baixe a saia pra ele num ver!”. “Ande logo que trago nutiça boa!”. “Deus do céu, vou avoando!”. “Antes de abrir a porta tome logo uma garapa bem açucarada!”. “Quem morreu?”
          Assim é o proseado inicial travado entre conhecidas, pessoas que quase todos os dias se visitam para colocar a conversa em dia, falar sobre a vida dos outros, lamentar a sorte, chorar a morte de alguém. Mas também para festejar os poucos instantes de contentamentos surgidos naquele mundão de sofrimento e desolação.
          Mas quando quem chega é pessoa estranha, forasteira, desconhecida, a coisa muda de tom. Ainda que o rito inicial de chegada seja o mesmo, com o “ôi de casa” acompanhado da confirmação que deseja ser atendido, daí em diante é esperar a resposta também diferenciada e a esperança de ser acolhido no seu bater de porta.
          Contudo, situações existem que fogem totalmente da normalidade caipira, do cerimonial sertanejo de chegada e acolhimento. Eis que de repentes surgem situações deliciosas de se ouvir, de uma poesia matuta que alegra coração de vento e passarinho. E o meu também, pois sou de lá sim senhor!
         E chega o tropeiro, o caixeiro-viajante, o ambulante, o cigano, o viajante de terras distantes, o retratista, o velho engraxate, qualquer um que chegue cansado da luta e da caminhada, e sedento ou faminto, ou querendo vender seu pano de chita, ler a sorte na palma da mão, e vai logo dizendo ao bater a porta:
         “Senhora dona da casa, ouça meu verso em flor, mas não sou poeta cordelista, muito menos trovador. Venha apreciar minha chita, pois sou humilde vendedor!”.
          “Quem está de dentro me escute. Venho de longe cansado, com sede e esfomeado, mas não quero esmola não, bastando que o bom coração me permita aqui sentar, nessa sombra refrescar, até seguir meu caminho. Mas se tiver sobra de pão, posso aceitar um tiquinho!”.
          “Senhora do lar e paz, bate à porta um incapaz. Incapaz de seguir adiante se ao menos um instante a essa porta não chegar. Venha que quero mostrar uma lavanda grã-fina, uma boneca de menina, um corte bonito de pano. E tem mais se não me engano. Para o esposo sapato, e também porta-retrato para guardar a família!”.
          “Ôi de casa, ôi do lar, quem estiver por aí e quiser ouvir um recado que trago de muito distante. Não tema que sou de paz e quero apenas dizer o que me foi pedido por alguém que certamente sente muita saudade. João, o seu filho mais velho, me pediu pra passar aqui e dizer que no próximo mês vai chegar. E pediu por tudo pra não esquecer de dizer: quer uma coalhada branquinha, uma umbuzada docinha e um doce de leite com bola. E também uma buchada com a cara desse lugar abençoado!
          E assim são as idas e vindas naqueles sertões. Pessoas que chegam, batem à porta, e gritam a própria existência. Ali, naquele meu sertão, toda palavra é vida, é reza e oração. Ainda que o linguajar seja sujo de terra e molhado de suor, não há palavra mais doce de se ouvir.
          Por isso mesmo ando agoniado para retornar, bater na porta de todo mundo e dizer: “Ôi de casa!”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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