Rangel Alves da Costa*
Quando o cabra me contou essa história só acreditei por respeito à sua idade. Já velho, calejado do tempo, não tinha como desacreditá-lo sem mais nem menos. Mas depois desse dia fiquei matutando sobre o assunto e cheguei à conclusão: o homem estava brincando comigo, só podia ser.
Desse modo, desde o instante que encerrou sua história que o olhei desconfiado. Se ele tivesse antecipado que se tratava de um causo sertanejo, de uma lorota proseada, ou mesmo de uma verdade enviesada, de apenas uma conversa para passar o tempo, tudo bem. Mas não.
Foi assim que ouvi história pra boi dormir. Melhor dizendo, foi naquela tarde, debaixo do tamarineiro matuto, que ouvi sobre o que fazer para adormecer boi, para fazê-lo cochilar. Até hoje não consigo imaginar ninando animal nem inventando coisas para levá-lo aos braços de Morfeu. Mas enfim...
Qualquer um imaginaria diferente, pois quando alguém diz que determinada história é pra boi dormir, logo vem à mente uma deslavada mentira, uma causo sem pé nem cabeça, um proseado desacreditado e que geralmente surge da boca de quem não tem o que fazer. Assim, noutro sentido, história pra boi dormir é aquela que a pessoa apenas ouve, porém sem acreditá-la, pois invencionice de lascar.
E disse o cabra, na maior seriedade do mundo:
Pra fazer boi dormir não é tarefa difícil não. E nem precisa que o bicho esteja com sono, cansado, enfadado ou mesmo adoentado. Do mesmo modo, logo irá adormecer mesmo que não esteja com vontade de sonhar, que uma vaca tenha prometido deitar ao seu lado, que tenha tomado um porre apaixonado pela novilha sedosa.
Na verdade, são muitas maneiras de fazer o bicho dormir de um sono só, de fechar os olhos assim que se derreie no chão, de se imaginar que a inesperada passagem lhe alcançou pelo sono tão profundo que demonstra. Pode zoar trovão, riscar relâmpago, cair trovoada, zunir tempestade e vendaval que o bicho estará no mais profundo dos sonos.
Mas como isso é possível, perguntei, vez que os animais geralmente fecham apenas um olho ao adormecer, deixando o outro sempre à espreita de imprevistos ou estranhos visitantes. Qualquer barulhinho suspeito e ele já está com os dois olhos abertos, completamente acordado, pronto para agir ou fugir.
E a resposta veio num só mugido. E disse que dependia muito da astúcia do dono do bicho, de seu poder de artimanha, de saber ludibriar o animal. Mas tudo para o bem, sem magoá-lo ou feri-lo, sem maltratar sua autoestima nem se sentir com vontade de abandonar o lugar. Mas pra fazer isso é preciso muito cuidado, muito jeito. E disse como seria esse jeito.
Primeiro chegue perto do boi, mas chegue com cuidado, um tanto entristecido, pesaroso, olhando desalentado pro tempo, pro horizonte, como se estivesse quase chorando. E se pude chorar até chore mesmo, de verdade, pois é sempre bom para transmitir realismo ao sentimento do seu animal.
Depois passe a mão por cima do pelo do bicho, alisei-o devagarzinho, pra cima e pra baixo e sempre mais, e em seguida, bem baixinho, vá dizendo que dava tudo na vida pra que o seu animal querido soubesse o quanto estava sofrendo com aquela seca toda, com aquela fome e sede parecendo que não vão acabar mais.
Bicho ouve, bicho sente tudo, tem mais sentimento do que gente. É uma verdade, sabia? Por isso mesmo que a essa altura já deve estar se derretendo por dentro, entristecido demais, sofrendo o mesmo pesar de seu dono. E porque acontece assim, então meio caminho já foi andado para que o bicho logo desabe num sono só.
E daí em diante é fácil demais, basta apenas mostrar sinceridade naquilo que diz, ainda que saiba que está cometendo verdadeiro pecado. Então chegue mais perto da orelha do bicho – sempre passando a mão no seu pelo – e diga que graças a Deus aquele sofrimento todo está chegando ao fim, tanto pra ele como pro seu rebanho, principalmente para aquele pintado, que é o seu boi preferido.
Por fim é só dizer que encomendou uma carrada de palma e farelo, além de um carro-pipa de água, e tudo chegará logo ao amanhecer. E se fosse ele deitava logo para dormir e a noite passar mais rápido. De manhã, quando abrir o olho, certamente já encontrará o alimento e a água que tanto deseja.
É doloroso. É triste demais, é pura maldade do humano para com o animal, mas é assim que funciona. Só que daquela vez não funcionou. O boi, matreiro que só, deitou e fingiu que dormia a sono solto. Quando o seu dono deu as costas ele atravessou a cancela e se meteu mundo afora.
Até hoje o mentiroso procura pelo seu valioso boi. E dizem que jamais encontrará, pois este dorme tão profundamente num lugar distante que não há barulho no mundo que o acorde do seu sonho com uma pastagem verdejante.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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