SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 5 de novembro de 2012

NUMA CASINHA DE SAPÉ (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Casinha de sapé: choupana no meio do mato, nas distâncias do mundo matuto, toda torta, de paredes baixas e encurvadas, levantada na ripa e no barro, segura no cipó de gameleira, no fio de caroá, coberta de capim-jaraguá ressequido.
Sem telhado na cobertura, sem a telha de barro que impedisse o pingo de chuva de qualquer dia ou a formação de buracos de caber tanta lua e tanto sol, já com a casinha em pé muito se esperou pelo sapé. Só mesmo muito esforço para juntar capim sapé do sertão.
É difícil tarefa encontrar o capim-jaraguá que tenha esteio suficiente para fazer cobertura. Tudo dificultoso, trabalhoso demais, além de que, por ali, as paisagens acinzentadas são como as terras estéreis onde nasce o sapé, como afirmou Coelho Neto, em seu Inverno em Flor.
Mas, uma vez colocada a cobertura, o caboclo sertanejo tem a sombra como leito, uma imaginária proteção contra qualquer intempérie. Quando o telhado é no barro, a chuvarada entra no barraco pela pingueira, através da telha quebrada ou desconjuntada, mas quando é no sapé dificilmente se forma brecha onde caia pingo.
Lá dentro, ou quase tudo num só lugar, somente o olhar e o desejo do casal para criar dependências, fazer as separações. Por isso mesmo que os dois avistavam uma saleta, um quarto e uma cozinha. E, num extremo imaginativo, chegavam a enxergar portas e cortinas.
Mas ali também a realidade. A presença da mesa tosca de madeira velha, dois banquinhos na mesma situação, uma rede de armar do lado de fora, debaixo do umbuzeiro adiante. E também dois potes, duas moringas, panela de barro e frigideira para os ovos de galinha de capoeira. Eram três. Depois que o padre passou em visita só restaram duas.
No calor insuportável do dia inteiro, vez que chuvarada era coisa nem de lembrar quando se deu a última, a refrescância do corpo se dava com água da moringa dormida no meio do tempo. Como não havia janela, ela era colocada do lado de fora em cima dum tronco para ser acariciada pela brisa da madrugada.
A cobertura de capim sapé estremecia toda quando o vento começava a soprar mais forte. Preso a cipós de gameleira e caroá, apenas uma ou outra tira seca se desprendia e fazia viagem pelo ar. Mas continuava firme, forte, protegia do sol, da poeira, do que caísse lá de cima.
Mas a vontade mesmo era que chovesse tão forte que as águas rompessem as arrumações e chuviscasse por dentro. Tinha nada não. Era o prazer da chuvarada, a certeza que a molhação estava de volta. Mas não havia jeito. Dia após dia e nenhuma nuvem gorda no horizonte, nenhuma formação de trovoada.
Um dia, alguma coisa que não foi pingo de chuva nem raio de sol, começou a cair lá de cima, da cobertura de sapé. Cair não, aparecer. E surgia sem ter nem por onde. Não havia brecha, abertura, nenhum ponto onde sequer passarinho pudesse entrar. Mas a verdade é que misteriosamente começou a aparecer coisa vinda lá de cima.
Primeiro uma borboleta, depois outra e mais outra. Porém, o que a senhora da casinha mais estranhou foi a cor das voejantes, que ao invés de coloridas como as demais que tinham abrigo nas redondezas, surgiam na cor de pau, num cinza amadeirado, parecendo galho seco. E outras foram descendo, surgindo não se sabe de qual brecha e tomando quase todo o barraco.
Quando a esposa se apossou dum pano para espantá-las, o marido gritou que pelo amor de Deus não fizesse isso, que deixasse tudo como estava, pois tinha ouvido dos mais velhos que borboleta daquela cor trazia no voo chuva de trovoada. E se encantava por a casinha ter sido escolhida para receber aquele sinal divino. Trovoada era o que mais precisavam por ali.
E não demorou meia hora para os trovões começarem a roncar distantes. O céu escureceu num repente, os relâmpagos tracejavam pelo ar, as nuvens negras já tomavam conta de tudo. E os primeiros pingos, grossos, barulhentos. Mas também a ventania. E esta desenfreada, balançando tudo que encontrava no seu caminho.
A ventania não se fez de rogada ao encontrar aquela frágil cobertura de sapé. Num sopro só, em apenas um sopro, e levantou todo o capim sapé pelo ar, fazendo com que a casinha ficasse sem a proteção de riba. Valei-me Deus, gritou a mulher; Valei-me Nossa Senhora das Borboletas, gritou o homem.
E num instante aquelas borboletas amadeiradas, que agora já eram incontáveis, começaram a subir e tomar as ripas, os cipós, e a se juntar umas nas outras, de modo que não demorou muito e o teto parecia feito de madeira resistente. E dentro da casinha não caía um pingo de chuva sequer.
Dois dias depois a trovoada foi embora e o teto de madeira continuo do mesmo jeito. Como galhos petrificados, unidos de tal forma que formavam como que tábuas firmes, as borboletas se transformaram na cobertura daquela pobre casinha. E para sempre.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com     

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