Rangel Alves da Costa*
Quem avista uma flor da manhã está avistando ela; quem imagina a fruta morena espelhando doçura está imaginando ela; quem se encanta com as singelezas da vida, com as belezas escondidas na natureza e com os desejos repousando nos olhos, certamente se fartará dos maravilhamentos diante dela.
Solta, sempre descalça, sempre feliz, sempre tão bela, assim era a mocinha. Digo era porque o despertar do amor tudo fez para colocar naquele semblante um laivo de dor, uma feição de tristeza, um aspecto de melancolia. Contudo, a inafastável realidade não conseguiu adormecer a doçura existente no seu coração.
Quando não passava faceira de lápis e caderno à mão, dessa vez calçada por ofício da aprendizagem, era encontrada em cada canto dos arredores de sua moradia. Saindo da casa humilde, de barro socado, gostava de passear pelas matarias, na beirada do riachinho, subir nas mangueiras e goiabeiras para se deliciar da fruta mais doce.
Dizem que até tinha modos estranhos demais para uma mocinha, ou moça feita como os olhos da rapaziada insistiam em confirmar. Quem já se viu menina daquele tamanho, já desde muito tirado o cheiro de mijo, ainda passar com boneca de pano na mão, tomando banho de chuva em época de trovoada, correndo feito uma doidinha atrás de uma bolinha de sabão?
Quem já se viu uma mocinha já moça, tão bonita e tão vistosa, sem se importar com o desleixamento da roupa de chita, gostar de viver com assanhamento nos seus cabelos longos e escorregadios, fazer de conta que a vida era uma brincadeira sem fim, que os bichos e passarinhos eram seus amigos, que as pedras tinham conversas interessantes? Ora, conversava e muito com as pedras.
Quando não estava nas brincadeiras, nas voações descontraídas, estava cantando na lavagem de roupas no ribeirão, estava conversando com as velhas senhoras nas cadeiras de balanço ao entardecer, estava preparando mingau ralinho para que Sinhá Totonha conseguisse engolir. Depois contava um causo bonito pra doente se alegrar. E a velha ria de se acabar. Mas depois chorava, e chorava de se acabar.
Todo mundo gostava dela, sentia sua falta, perguntava onde havia se metido que nunca mais apareceu para alegrar coração. Ela não dizia onde estava quando sumida por pura vergonha. Não queria que ninguém soubesse que caçava folhas secas na mataria para escrever uns versinhos. Tinha medo que soubessem desse lado inspirado e logo começassem a falar que estava apaixonada.
Mas um dia uma dessas folhas secas lhe fugiu às mãos, e bem quando estava na janela pensando coisa muito diferente do que o normal. Seu coração inocente segredava-lhe coisinhas que a deixava atordoada. Somente assim começou a pensar em menino bonito, em rapazinho que segurasse na sua mão nas paisagens sertanejas.
Era coisa de querer namorar. Sentia, mas não queria. Ou queria, mas temia. Não se achava com idade ainda. Mas então, mocinha, por que escrevia versos dizendo assim: A semente um dia vira flor, e fica contente com o beijo do passarinho, mas quer sentir mais sabor, e da boca que venha de outro ninho.
E a folhinha que lhe fugiu da mão foi sendo levada pelo vento até cair em cima do banco da praça. E chegaram mais, muito mais versos levados no vento porque ela se enraiveceu por pensar em namoro e jogou pelo ar todos os versinhos escritos nas folhas. E o sopro da tarde parecia um livro de poesia.
Mas um olhar avistou uma poesia, outros olhares avistaram folhas secas estranhamente riscadas, e tantos olhos se admiraram e se apaixonaram pelos versos simples, pequeninos, mas cheios de encantamentos amorosos. E, de folha à mão, os meninos passavam tristonhos, apaixonados, diante de sua janela. Procuravam a poetisa, a dona daqueles versos, alguém que pudessem oferecer uma flor.
E pela fresta da janela entreaberta, de coraçãozinho apertado, ela sofria por querer continuar sendo apenas menina levada e por não poder fazer daquela sensação amorosa uma brincadeira. Sabia que o despertar ao amor era coisa muito mais séria do que bolhinha de sabão.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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