SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 13 de novembro de 2012

UM NINHO NO MEU QUINTAL (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Hoje em dia, com as secas esturricando e deitando tudo, com a desenfreada devastação pelas matarias catingueiras, a coisa mais difícil no mundo é encontrar ninho de passarinho. Nem o próprio passarinho se vê mais como antigamente. Dias e dias a fio para ouvir algum canto tristonho.
Verdade é que os voejantes sumiram, arribaram, partiram em revoada rumo às distâncias desconhecidas. Precisam de alimento, precisam de água e de abrigo, e infelizmente o sertão não pode mais oferecer quase nada disso. Só restaram mesmo aqueles passarinhos grudados à terra feitos mandacarus e xiquexiques. Mas são poucos, quase inexistentes, e no silêncio eterno do seu cantar.
Será tristeza, dor, lamento ou coisa parecida? Tenho certeza que sim. Bicho berra, agoniza, vai secando; homem sofre, lamenta, chora; planta esturrica, definha, morre de vez; terra endurece, racha, vira pedra. E com passarinho não poderia ser diferente. Alegria das matas, voando de pau em pau, quando se vê sem moradia e sem pão aperta-lhe o coração. O bico cala de vez, as asas querem voar. Sem forças. Vira carniça de cobra.
Molecote ainda, vivendo num mundo de encantamento sertanejo, numa época em que passarinho fazia festa até no quintal, lembro das reinações que já fiz com os bichinhos. Saía no meio da noite com lanterna para encandear e pegar fogo-pagô com a mão, bem no momento que ela estava no ninho. Armei arapuca, pequei peloquinho, fiz coisa errada demais. Mantinha até um viveiro enorme para fazer inveja aos outros meninos. Quanta besteira, meu Deus!
Os pardais. Ah, os pardais faziam a loucura de muita gente, de muita dona de casa. De repente, e tomavam a casa inteira, faziam ninhos na cumeeira, nos cantos das paredes, nos caimentos das bicas, por todo lugar. E faziam um barulho terrível, uma melação maior ainda. E lá ia avexada a desesperada mulher com o cabo de vassoura tentando espantar a passarinhada.
E no mesmo instante avistava-se uma nuvem de pardais, nuvem gorda, voejante, barulhenta. Não demorava muito e todos voltavam aos pouquinhos. E a pobre mulher ficava em tempo de endoidar com a casa inteirinha tomada de tanta sujeira, de tanta pena pelo ar. Mas até os pardais sumiram, foram embora de vez do meu sertão.
Hoje distante de lá, todas as vezes que retorno percorro as beiradas dos descampados e não consigo avistar nem ouvir qualquer canto passarinheiro. Mas sei que ainda existem, difíceis de ser avistados mas existem. Logo cedinho, na hora do meu primeiro passo, vejo a rapaziada passar com gaiolas em direção aos tocos de paus, às árvores ainda existentes pelos arredores. E vejam o absurdo: dizem que vão fazer os prisioneiros reaprender a cantar com os que estão em liberdade!
Volto sempre pensando no sertão que era e na terra irreconhecível que está agora. Trago sempre comigo um canto de coleirinho, de azulão, de canarinho, de cabeça, de curió. E também as cores do periquito, do sabiá, da rolinha, do tiziu. Trago tudo o que não pude mais encontrar. Mas tudo rebuscado no álbum da memória, no grande livro de outros tempos, naqueles idos de vida pujante na mata e nos voos cantantes.
Mas ontem, aqui na cidade grande, percebi algo diferente no meu quintal. Primeiro ouvi um belo canto logo ao alvorecer, melodia cuja suavidade só poderia ter surgido num bico de passarinho. Depois senti um bater de asas e um voo apressado, com plumas pequeninas e coloridas. E em seguida pousou bem no alto da goiabeira. Era o mais belo dos pássaros, daqueles tantas vezes avistados nos tempos idos do meu sertão.
E não somente avistava o passarinho lá em cima como podia enxergar um ninho mais embaixo. Em meio aos galhos da goiabeira lá estava o encantador aposento feito de fiapos, de capim, de folhagens secas. Um ninho no meu quintal era a coisa mais maravilhosa que podia acontecer. E estava lá, todo bem feitinho e arrumadinho. O seu dono lá em cima, olhando pra mim, de vez em quando ensaiando um canto.
Mais tarde, quando o sol bateu e fui molhar os olhos, já não precisava de água. As lágrimas caíam com uma saudade imensa. Tanta dor que mal dava para olhar adiante e enfrentar a realidade. Nenhum quintal, nenhuma goiabeira, nenhum passarinho, nada de ninho. Tudo muro, tudo cimento, tudo tristeza.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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