Rangel Alves da Costa*
O açoite da natureza, uma tristeza danada. Mais de dois anos sem cair gota d’água, e de repente o tempo escurece e as nuvens escuras despontam ao longe. É chuvarada na certa, e muita, e da boa, vai um sertanejo repassando ao outro.
Os olhos chegam a lacrimejar; um coração apertado, uma graça divina. É tarde e parece que já é noite de tanto escurecimento no horizonte. Se os trovões e os relâmpagos já tivessem dado os seus sinais era certeza de trovoada das grandes, mas pelo jeito era tempestade repentina formada lá por outras paragens. E agora se encaminhava naquela direção.
Mas antes de cair qualquer pingo de chuva, antes mesmo que as nuvens prenhes começassem a derramar seus molhados, eis que a ventania irrompe pelas montanhas, faz viagem apressada e chega soprando veloz. E que doloroso açoite, que chibatada na vida. Trazia molambo no ar e no chão encontrou logo o barraco desde muito caindo aos pedaços.
Assim que o dono da casa ouviu o zunido gritou pelo amor de Deus, berrou chamando os seus e correram aos atropelos em qualquer direção. Não deu tempo de levar nada de casa, nem uma roupa, nem um chinelo, nada. A boneca de pano ficou estirada no chão de barro, o cavalo de pau do menino permaneceu pendurado numa ripa. Mas por pouco tempo.
A ventania veio certeira, faminta, veloz, voraz, com sede de levar tudo que encontrasse pela frente. E ao longe a família chorava ao ver o casebre completamente destruído pela passagem da lufada inclemente. Não ficou nada, absolutamente nada em pé. O pouco que possuíam ficou debaixo de escombros. Grande parte da vida estava ali.
E no segundo depois o aguaceiro começou a cair volumoso, forte, parecendo uma caixa d’água revirada lá em cima. O restante do dia assim, virando a madrugada e a mesma molhação até o entardecer. Restos, pedaços, troncos, galhagens, folhagens, tudo jogado, misturado ao lamaçal.
Na noite as águas já estavam mais volumosas, já escorriam por cima das pedras rasteiras, já formavam enxurrada por todo lugar. A boneca de pano já estava longe; o cavalo de pau galopando veloz noutras trilhas. E também o sonho da menina, a alegria do menino, a esperança da família.
Não restou absolutamente nada que pudesse ser recolhido. Do casebre apenas o lugar lamacento, e nos caminhos seguidos pelas águas valentes apenas os restos dos restos, dos restos do nada. Uma tampa de panela, uma panela amassada, um copo de plástico. A velha moldura da imagem do santo foi parar toda torta num galho de catingueira. O menino perguntou se alguém tinha visto o papagaio. Ninguém respondeu.
Não adiantava continuar chorando, lamentando, em total desespero. Acostumados a tanto sofrimento, agora só restava esperar a tempestade passar para recomeçar tudo de novo, erguer um novo barraco, colocar uma porta na frente e outra atrás e dizer que ali era o lar da família. E mais tarde colocar uma plaqueta dizendo que ali mora uma família feliz.
Mais sorte tiveram os outros, os vizinhos. Muita parede desabou, mas nenhuma casa caiu. Apenas aquela. E como na história bíblica da arca depois da tempestade, assim que o passarinho passou voando e um raio de sol rasgou a nuvem para despontar, chegou um amigo, chegou um vizinho, chegou até quem não se esperava que chegasse ali. Mas não para visita, para chorar o sofrimento, mas para erguer nova moradia.
Barro não faltava, cipó também não, galho de árvore por todo canto, e foi tudo sendo juntando defronte ao mesmo lugar do casebre derrubado, desfeito, levado. E chegaram as enxadas, as pás, os enxadecos, os facões, as facas. E os braços se firmaram, os corpos curvavam no trato do barro, as mãos trançavam o cipó nas forquilhas, outras mãos fincavam paus. E o barro pronto, o barro jogado, a parede erguida, o próximo tapume, um vão mais um vão, e a casa de barro erguida.
Telhado de folha de bananeira, porta de pano, até a vida melhorar. E quando a vida melhorar, antes de qualquer coisa, será preciso comprar uma boneca de pano e um cavalo de pau. A mãe bem que poderia fazer tais brinquedos, mas vive ocupada demais fazendo promessas para a casa suportar as chuvas que mais cedo ou mais tarde voltarão.
E o homem cava a terra, joga a semente, limpa o suor e se mostra contente com o que ainda possui. A esperança!
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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