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sexta-feira, 9 de novembro de 2012

BEBENDO NA FONTE (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Vez por outra nos deparamos com a letra de uma música muito parecida com outra. Uma criação poética, mesmo original, não nos distancia de outra poesia. Romances parecem ser copiados, grande parte da arte com feições preexistentes. Seria plágio?
Não se caracteriza como plágio aquilo que, mesmo tendo proximidade ou apresentando reconhecidas coincidências, não foi tomada da obra de outro artista e passou a ter a assinatura de outro autor. Tratar sobre o mesmo não é cometer furto literário.
Também não é plágio a imitação, desde que o artista imitador não apresente como sua a obra de outro. Do mesmo modo, não se pode ter como afanação artística ou literária aquele que se utiliza de um pano de fundo já trabalhado por outro para ali produzir sua obra, ainda que se utilizando da mesma trama.
Se todo pano de fundo literário fosse passível de furto artístico nem se falaria na genialidade de Shakespeare. Ora, o grande poeta buscou nas antigas tradições literárias muitos dos motivos para a sua produção. E ninguém pode afirmar que ele não passou de um plagiador.
Para se ter uma ideia, quantos escritores já se utilizaram da lenda de Mefistófeles, cujo mito do ser que pactua com as forças do mal para ter a vida eterna e a sabedoria deu vida ao personagem Fausto? Goethe foi apenas um dos muitos que beberam na fonte do mito para produzir narrativa literária.
Quantos contornos já ganharam a Bela Adormecida, O Médico e o Monstro, Frankenstein, Romeu e Julieta, A Divina Comédia, A Eneida, Ulisses? Por falar em Ulisses, James Joyce plagiou a Odisseia de Homero? Lógico que não. O escritor pode adaptar a um novo tempo uma tragédia antiga, uma fábula, um mito.
Contudo, verdade é que existem criações que mesmo possuindo assinaturas distintas não deixam de ser praticamente um plágio. Neste caso, as coincidências são tantas que não haveria como o autor posterior não ter praticamente copiado a criação anterior.
Temos exemplo desse tipo no poema “Instantes” - que por muito tempo foi atribuído a Jorge Luís Borges, mas que é de autoria da americana Nadine Stair – em comparação à letra da música “Epitáfio”, cantada pelo grupo Titãs, e de autoria de Sérgio Britto. Vejamos primeiro uma parte de “Instantes”:

“Se eu pudesse novamente viver a minha vida, 
na próxima trataria de cometer mais erros. 
Não tentaria ser tão perfeito, 
relaxaria mais, seria mais tolo do que tenho sido. 
Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. 
Seria menos higiênico. Correria mais riscos, 
viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, 
subiria mais montanhas, nadaria mais rios. 
Iria a mais lugares onde nunca fui, 
tomaria mais sorvetes e menos lentilha, 
teria mais problemas reais e menos problemas imaginários...”.

E “Epitáfio”:

“Devia ter amado mais
Ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais
E até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer...
Queria ter aceitado
As pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria
E a dor que traz no coração...
....................
Devia ter complicado menos
Trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos
Com problemas pequenos
Ter morrido de amor...”.

Alguma coincidência? E outra coincidência se verá adiante, e entre o poema “No caminho, com Maiakovski”, de Eduardo Alves da Costa, e um texto de Martin Niemöller, de 1933. Neste caso, porém, não há identidade nos motivos dos versos como os observados acima, mas um paralelo de justificação, ou seja, os dois escritos acabam tendo o mesmo contexto por fundamentos diferentes.
Eis o que consta de parte dos versos de “No caminho, com Maiakovski”:

“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada...”.

E o que se contém no poema de Martin Niemöller:

“Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.
N o dia seguinte vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei.
No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico.
Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
já não havia mais ninguém para reclamar”.

Como observado, as inspirações de autores em autores são mais intensas do que imagina nossa vã filosofia. Estaria eu furtando tal assertiva de alguém? Que me desculpe Shakespeare, mas ser ou não ser, eis a questão. Como muitas vezes não dão validade nem reconhecimento às criações literárias próprias, então será preciso beber na fonte famosa para o reconhecimento. Ao menos como plagiador.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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