Rangel Alves da
Costa*
O problema
se alastrou agora, mas o conceito de biografia desde muito que vem sendo
desvirtuado. Não é difícil saber que o termo biografia corresponde à história
de vida de alguém. Os livros unissonamente repetem que biografia é a história
escrita da vida de uma determinada pessoa. É, pois, um documento que consta a trajetória
de vida de alguém, com dados precisos, incluindo nomes, locais e datas dos
principais acontecimentos.
Ao longo
dos anos, contudo, a comercialização da imagem de personalidades foi
transformando a descrição biográfica num relato de fatos geralmente
extravagantes ou que despertem a curiosidade. A intencionalidade maior passou a
ser não a descrição o mais fidedigna possível da vida e dos feitos da pessoa
biografada, mas quase que exclusivamente acerca daquilo que poucos tinham
conhecimento.
Desse
modo, não mais interessa a determinado tipo de biógrafo se ater à realidade, a
relatar cronologicamente uma vida, a detalhar fatos importantes no percurso da
existência, mas tão somente revelar situações e segredos até então desconhecidos
pela população. Nesse passo, o que seria uma história de vida se transforma num
recorte de situações íntimas e pessoais, até mesmo invadindo a privacidade, num
emaranhado de fofocas.
Atualmente,
são pouquíssimos os relatos biográficos que não extrapolam a verdade para
adentrar no mundo da bisbilhotice e do mexerico, da inverdade e do maldoso boato.
Realmente ainda persistem alguns escritos dignos de espelhar com fidelidade o
biografado, fazendo constar os fatos mais marcantes de uma vida, ou mesmo um
apanhado geral da existência, passo a passo.
Em
situações tais, afirma-se que houve compromisso do biógrafo com a verdade,
ainda que em muitos ecoem laivos de descrença, raiva ou indignação. Mas eis que
ali está descrita a vida de uma pessoa comum, ainda que famosa, e não de uma
divindade, um santo ou mártir. E toda biografia séria de pessoa comum há de ser
entremeada de realizações e frustrações, de conquistas e derrotas, pois assim é
a vida.
Biografias
surgem que são desejos pessoais do biografado em ter sua vida descrita para a
posteridade. Alguns providenciam para que alguém apenas desenvolva
literariamente os seus relatos e os ordene perante suas versões e os recortes.
E haveria de ser assim, pois dificilmente alguém vai relatar para as páginas de
um livro aquilo que tanto se arrepende de ter feito ou que macule a sua imagem.
Daí que toda biografia encomendada geralmente descreve uma infância pobre, uma
vida de lutas e conquistas sacrificantes.
Contudo,
outras biografias existem - as chamadas não autorizadas - que são mistas de
realidade, de possibilidade e de invencionice. Como estas se voltam para
famosos e boa parte da vida destes já é do conhecimento comum, então o biógrafo
entra no perigoso caminho de descrever fatos ainda não conhecidos e situações
que envolvem a intimidade. Contudo, o perigoso mesmo é ir além da possibilidade
e descrever como verdade aquilo que jamais existiu. Ou ainda dar ao
conhecimento fatos que o biografado deseja ter preservados, ainda que
verdadeiros.
Mas ainda
há um tipo de biografia que nem deveria ser reconhecida como tal, mas sim como
livreto sensacionalista e aproveitador, voltada que é exclusivamente para
descrever ou inventar fatos relacionados à intimidade de famosos. E não apenas
esmiuçam as intimidades como criam situações inverídicas envolvendo sexo,
drogas, fracassos. Estas não possuem compromisso nenhum nem com o biografado
nem com a verdade, mas apenas com a lucratividade.
Estas duas
últimas espécies de biografias são as que mais fazem parte dos atuais e
acalorados debates. Meu ponto de vista é a mesma concepção de muitos. Não
comungo com a ideia segundo a qual os podres não devam ser conhecidos, as
intimidades não possam ser reveladas e cada um pode dispor de sua imagem ao
bel-prazer. E não porque a própria fama já retira essa privacidade que muitos
desejam manter contra tudo e todos.
E aos
descontentes repito que há os caminhos da lei. Ora, se a biografia não passa de
um lamaçal ou de uma junção de mentiras e aleivosias, que se busque o
judiciário para ter a honra respeitada. Mas somente depois que for comprovada a
desonra, e não através de censura prévia como grande parte deseja fazer.
Que os
famosos também desçam dos pedestais e lancem os olhos nas letras da lei.
Logicamente que o Código Civil, no art. 20, abre brechas para que as
personalidades procurem censurar previamente as biografias. Contudo, a
permissão ou autorização está contida na Constituição Federal, ao afirmar que é
livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; é livre a
expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença; é assegurado a todos o acesso à
informação (CF, art. 5º IV, IX e XIV).
O
biógrafo, pois, não pode ser previamente impedido de publicar sua obra pelo simples
fato de que poderá causar dano a alguém. A não ser que o conteúdo ou parte
deste já seja do conhecimento. Censurar previamente é tentar que o judiciário
antecipe o julgamento sobre suposta violação da intimidade, da vida privada, da
honra e da imagem. Ora, o dano deve ser provado e não presumido.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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