SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 10 de novembro de 2013

OS SONHOS APAVORANTES DE TORQUATO JERIMUM


Rangel Alves da Costa*


Os amigos e parentes quase não o reconheciam mais. Sertanejo de vivacidade de fogo, de repente passou a se afeiçoar muito mais a um fantasma rastejante. Coisa esquisita de se ver. Os olhos pareciam dois grotões profundos e esturricados, a pele ensolarada havia murchado de vez. O homem estava fino, encurvado, parecendo nas últimas.
O compadre avistou-o debaixo de um sombreado de tamarineira e se apressou para saber o que se passava com o amigo, o porquê daquele corpo alquebrado e tez tão tristonha. Aproximou-se mais preocupado ainda porque andara sabendo que o velho amigo nem na lida do dia a dia era mais avistado, e fato estranho de acontecer, eis que reconhecido pela tenacidade mesmo debaixo do sol maior.
A resposta veio na bucha, como se diz nas distâncias interioranas. O motivo de aquilo tudo estar acontecendo assim havia sido um sonho; ou melhor, sonhos apavorantes, arrepiantes, verdadeiros desafios noturnos que não deixavam mais o homem descansar uma noite sequer. E o mais espantoso foi o relato feito acerca dos tão terríveis devaneios noite adentro.
E disse ao compadre que já fazia mais de uma semana que bastava deitar, fechar os olhos, adormecer um tiquinho e logo o danado do sonho despontava em galope assustador. Nunca se repetia, mas era muito parecido, vez que sempre envolvendo político e política. Redobrou as orações antes de se deitar, chegou mesmo a fazer promessa, mas não tinha jeito. Quando pensava que ia dormir sossegado, e eis que a noite se transformava num tormento.
O primeiro sonho parecia coisa besta, até descambar num terrível acontecido. Bateram-lhe à porta, foi abrir, e se deparou com um velho e conhecido político, daqueles que em toda eleição está na disputa. Pensou que seria apenas uma visita descompromissada, mas logo o homem começou a lembrá-lo que as eleições se aproximavam e tinha certeza que podia contar com o apoio do amigo. E o amigo era ele, ao menos naquela hora. Não conseguiu mais dormir daí em diante.
Na noite seguinte, e outro sonho, e dessa vez ainda mais apavorante. O político já estava sentado na varanda e se danando a prometer e a mentir que não acabava mais. Dizia que nos mandatos passados não havia tido tempo suficiente para colocar em prática o melhor para a população, mas que se eleito fosse amanheceria e anoiteceria no seu gabinete recebendo cada eleitor e resolvendo todos os problemas da comunidade. E todos mesmo. Como sabia que não conseguiria mais dormir, então levantou e ficou perambulando aturdido até o dia clarear.
Na terceira noite, e eis que o político já chegou apertando sua mão, com o sorriso maior do mundo no rosto, lançando os braços em abraços, numa intimidade de fazer qualquer um ficar com pulga atrás da orelha. Em seguida lhe chamou num canto e disse que podia espalhar pelos arredores o seu plano de governo para a região. O problema da seca seria resolvido de vez, nenhum pai de família ficaria sem trabalho garantido, as cestas de alimentos seriam triplicadas, ali tudo seria verdejante, um verdadeiro paraíso, e o povo sertanejo viveria com tal bonança que até causaria inveja aos das regiões mais ricas. E o restante da noite foi um verdadeiro martírio para o coitado do homem.
Noite após noite tentando dormir sossegado e não conseguindo por causa dos sonhos aterrorizantes e mentirosos, então o pobre sertanejo resolveu nem mais deitar. Tinha medo de fechar os olhos e lhe chegar a danada da política e aquela aviltante figura para tirar sua tranqüilidade. Contudo, o que lhe acabou de vez com a esperança de ao menos um pouquinho de adormecimento foi exatamente o último sonho surgido.
Nele, o coitado do sertanejo se via subindo em pau de arara para acompanhar os comícios do candidato, pregando retratos e mais retratos em frente ao destroçado barraco, pedindo voto a um e a outro para aquele que seria a salvação do sertão, até ajoelhado em promessa para que a eleição fosse garantida. Levantou num pulo, suando, com o corpo queimando de febre, parecendo que iria passar dessa pra melhor naquele momento. E realmente desejou uma boa morte a viver naquela situação.
Daí em diante resolveu que cochilaria em pé, e coisa ligeira para não dar tempo de o sonho chegar, mas não deitaria mais de jeito nenhum. E se repetia que preferia morrer a passar por aquilo tudo novamente. Por mais que a esposa tentasse reverter a decisão não houve mesmo jeito. A noite avançava, a madrugada chegava e ele de pé, andando de canto a outro. Por isso que foi afinando, parecendo moribundo, sem forças para mais nada.
Após ouvir o relato do acontecido, o compadre, com lágrimas tomando os olhos, perguntou-lhe se sabia o que era pesadelo. E o compadre respondeu que sim, mas que preferia falar em sonho porque ao menos não era tão assombroso quanto o tal do pesadelo. Já bastava a política e o político findando os seus dias. E haveria pesadelo pior?


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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