SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 17 de novembro de 2013

PI PATEL E RICHARD PARKER: UMA METÁFORA ANGUSTIANTE


Rangel Alves da Costa*


Só para recordar, Pi Patel e Richard Parker são os personagens principais do filme “As Aventuras de Pi”, de 2012, sob a direção do taiwanês Ang Lee. Pi (Suraj Sharma), após o naufrágio do cargueiro onde viajava com sua família e animais de zoológico, consegue escapar num bote salva vidas, mas tendo de dividir o espaço com alguns animais. Contudo, apenas um animal consegue sobreviver, o tigre Richard Parker. Daí em diante começa uma relação mais que insólita entre os dois.
Insólita, difícil, cheia de animosidades, mas que aos poucos, diante das circunstâncias, vai se transformando em compreensão para o resguardo da sobrevivência. Contudo, o que mais impressiona nessa relação entre o jovem e o tigre não é a forma como os dois se tratam nem a consciência do menino de que precisa domar a fera para garantir a própria vida. Não. Mas o que está nas entrelinhas dessa relação.
Ora, o convívio entre o jovem Pi e o tigre Richard Parker reflete situações outras que não somente aquelas na solidão perigosa das águas. Aqueles dois seres com mesmo destino e entregues à sorte das vastidões, provocam reflexões outras que vão muito além da trama proposta no filme. Numa visão mais profunda, podemos ter em Pi a concepção da necessidade de transformação, enquanto no tigre aquilo que precisa ser transformado. Somente assim as circunstâncias desfavoráveis poderiam ser superadas.
Tem-se, de início, que a racionalidade de Pi, em confronto com a irracionalidade do tigre, leva à percepção de que os dois precisam encontrar meios termos para que seja possível a sobrevivência. Neste aspecto sobressai a força da racionalidade, pacientemente esperando que a brutalidade de fera vá sendo diminuída até que seja possível uma aproximação.
O garoto, além da racionalidade, procurou ser o menos instintivo possível. Evitou o confronto direto exatamente para desarmar as forças daquele que o queria devorar. Pi bem que poderia pensar numa armadilha que lançasse aquela ameaça às águas, prontamente se livrando do perigo. Mas não. O que fez foi de uma estratégia humanista sem precedentes.
Simplesmente deixou o bote ao dispor da feroz ameaça e procurou refúgio em cima das águas, em tábuas lançadas da embarcação. Ficou protegido de qualquer ataque porque sabia que o tigre não o alcançaria onde estava, ainda que fosse ao lado. As águas serviam de escudo, mesmo que o outro de vez em quando surgisse na borda rosnando, mostrando os dentes e as garras, faminto.
Ao perceber a fome do tigre Richard Parker, então Pi passou a levar adiante outro passo no seu plano de ação. Pescou e arremessou o alimento; recolheu água da chuva e procurou colocar à disposição da fera. Mas não tentou dividir novamente o mesmo local porque sabia que a qualquer momento poderia servir como refeição. O que fez foi fazer com que o outro sentisse que necessitava dele para sobreviver.
Assim, aos poucos foi buscando aproximação, mostrando que sua intenção era somente a de salvar a vida de ambos e que os dois bem poderiam tentar melhor sorte estando unidos. E o tigre, sentimentalmente tocado pelas ações do garoto, mesmo resmungando teve de aceitar o seu convívio. E de repente já estava escorado no colo do amigo. E foi assim que conseguiram sobreviver depois de o bote alcançar terra firme.
E eis o momento mágico de toda essa trama. Todo aquele sacrifício havia fragilizado demais o garoto. Pi desabou assim que desceu do bote. Os seus olhos mal conseguiam enxergar o tigre Richard Parker indo embora, se retirando em direção à mata. É como se depois de tanta luta nada fosse conquistado. Mas o menino sentiu que poderia morrer feliz porque conseguiu salvar aquele voraz amigo.
Pi acaba sobrevivendo, mas isto só tem relevância para a trama. Ou a morte ou a vida não modificariam aquelas lições extraídas nas dificuldades das águas. Acima de tudo ficou demonstrado que em situações de perigo não há que, necessariamente, afastar o outro do caminho para buscar salvação. O perigo que se corre é insignificante diante da preservação também da outra vida. Desse compartilhamento surge a certeza de que nem sempre o egoísmo prevalece em muitos corações humanos.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Ana Bailune disse...

Um filme lindo, inesquecível. Uma metáfora da vida. Muito nos entregamos à amigos que não valem a pena, apenas porque nós só temos a eles (ou assim pensamos) enquanto fingimos não perceber que eles desejam nos devorar. No final, quando não nos devoram, voltam-nos as costas.