SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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quarta-feira, 30 de maio de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (35)

                                         
                                                       Rangel Alves da Costa*


Chegando a casa, o pequeno falecido foi estendido num banco e coberto com colcha bonita. Quando o caixão chegasse seria banhado, vestido e colocado noutro lugar, pronto pra sentinela. Já era quase entardecer.
Crisosta apanhou o dinheiro que achou necessário e pediu para o homem ir até a cidade providenciar o caixão e a roupa. Mandou também trazer velas. Era difícil encontrar flores por ali. Se os campos não estivessem tão ressequidos certamente que ela mesma iria colher um buquê de aroma campesino. Mas não.
O homem saiu apressado para providenciar tudo e ela ficou por ali chorosa, agoniada, numa aflição de não acabar mais. Não conseguia entender que destino era aquele que possuía um fim tão trágico para um inocente, um cheio de vida, um menino da natureza.
O cachorro se colocou debaixo do banco e, completamente silencioso e entristecido, não saiu mais daí de jeito nenhum. Ela até havia esquecido a comida preparada em cima do fogão, havia esquecido tudo. Não estava com um pingo de fome.
O homem chegou já noite preta e dizendo que logo mais apareceriam mais pessoas para a sentinela. Ninguém estava ainda acreditando no triste acontecimento e todo mundo agora botava a culpa nos pais. Mas não era momento de falar sobre isso. Foi o que disse, providenciando a limpeza do corpo em pouca água, a colocação da roupinha e depois os preparativos no caixão.
Ficou ali mesmo estendido na sala, por cima do banco, com velas e a Cruz do Nosso Senhor ao fundo. Aquela cena fazia Crisosta lembrar outras passagens recentes, tão dolorosas como aquela. E o silêncio da noite foi sendo cortado pelos passos na estrada, pelas pessoas que chegavam para a sentinela.
Uma lágrima só em todos, uma despedida tão dolorosa que parecia ser parente, filho de cada um. Quase ninguém falava, quase ninguém encontrava qualquer palavra naquele momento. Somente Deus para compreender os desígnios, para saber a hora de cada um, para saber os motivos de estender a mão e chamar para o seu lado aqueles que mereçam a salvação. Mas já seria tempo daquele menino? Não, não, não. Seria resposta unânime perante os desconsolados.
E com voz melancólica, num tom lamuriento e todo carregado de dor, uma senhora puxou uma incelença, que é o canto próprio para velar mortos naquela região agrestina.

“Uma incelença que nossa Senhora deu a nosso Sinhô
Essa incelença é de grande valô
Já é uma hora, os anjos vinhero te vê
E ele vai, e ele vai, e ele vai também com você.

Duas incelença que nossa Senhora deu a nosso Sinhô
Essa incelença é de grande valô
Lá de cima, lá no ceú, lá no seu paraíso
O Sinhô te abençoa no dia do Juízo

Três incelença que nossa Senhora deu a nosso Sinhô
Essa incelença é de grande valô
Esse anjinho se despede desse mundo de aflição
Foi chamado por Deus ao lhe estendê a mão
Quatro incelença que nossa Senhora deu a nosso Sinhô
Essa incelença é de grande valô
O chamado do Sinhô não nos tira a tristeza
O anjinho que vai indo no mundo era maior presteza”.

E assim cantaram a cantiga dos mortos até o número doze, a décima segunda incelença, pois este é o número dos apóstolos. Em seguida entoaram outro lamento fúnebre:

“Uma incelença
Foi quem mereceu
Palma, capela e fulô
Vai cantá mais os anjo
Lá no reino do Sinhó.

Duas incelença
Na saudade que deixou
Leve vela, rosário e fulô
Canta canta mais os anjo
Bem pertinho do Sinhô”.

O dia clareou e os cantos de despedida ainda diziam adeus ao menino caçador.
Continua...



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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