SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 13 de maio de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (17)

                                         
                                                         Rangel Alves da Costa*


A noite caiu num tombo. Lua, pouca lua, quase lua nenhuma. Alumiava o caminho de qualquer pessoa lá embaixo e sumia num instante. Encoberta por nuvens, espalhava pelos rincões um negrume de angústia e melancolia.
Essa noite especialmente estava mais triste, mais fechada, mais noite mesmo. Até a mataria fazia silêncio, nada de farfalhar das folhagens, nada do pio do passarinho no ninho, nada do zunido do bicho fazendo a sua andança noctívaga. Vaga-lumes cortavam a escuridão e anunciavam a dormência das horas.
Dentro de casa, já de portas e janelas fechadas, com dois candeeiros acesos, Crisosta queria encontrar alguma coisa para fazer até o sono chegar, se houvesse, e não se voltar para aqueles pensamentos que tanto queria evitar. Sabia que não adiantava mais ficar se lastimando por aquilo que foi vontade de Deus.
Deus dá e tira a vida, coloca na terra e depois chama para seu lado aquele que merecer, e do barro recolhido que virou pó será moldado outro ser, conhecia bem esses dizeres. Mas ela ainda estava de pé, de barro firme, batido, forjado, até então imune à ventania. Mas chegaria o dia da tempestade. Disso não duvidava.
Colocou um candeeiro mais perto de uma velha poltrona, catou a Bíblia guardada cuidadosamente por perto e resolveu chamar o sono através da leitura de passagens do livro sagrado. Lia pouco, é verdade, ainda tinha dificuldade de juntar todas as letras no olhar e logo decifrar a palavra, mas tinha leitura suficiente para entender o significado das palavras.
E abriu num Salmo de Davi que já estava marcado com folha seca, desde muito ali:
O Senhor é meu pastor, nada me faltará. Em verdes prados ele me faz repousar. Conduz-me junto às águas refrescantes, restaura as forças de minha alma. Pelos caminhos retos ele me leva, por amor do seu nome. Ainda que eu atravesse o vale escuro, nada temerei, pois estais comigo. Vosso bordão e vosso báculo são o meu amparo. Preparais para mim a mesa à vista de meus inimigos. Derramais o perfume sobre minha cabeça, e transborda minha taça. A vossa bondade e misericórdia hão de seguir-me por todos os dias de minha vida. E habitarei na casa do Senhor por longos dias”.
Já havia lido e relido outras vezes, por isso mesmo que colocou a folha seca mais rapidamente no lugar e disse a si mesma mais confortada: O Senhor é meu pastor, nada me faltará. Ovelha de seu rebanho, não temerei o que o homem possa fazer, não temerei a maldade do mundo, não temerei os labirintos da vida, e na minha confiança divina não temerei a nada nem a ninguém. Estou só, mas na grandiosa presença de Deus, e isso me basta.
Em seguida, sem pensar muito sobre o que iria fazer, simplesmente caminhou até a porta, abriu-a e deixou o ar mais refrescante da noite entrar.  Mas era apenas um leve vento, apenas uma aragem a dizer que todo lá fora estava como paralisado, inerte, sem nada acontecendo debaixo da lua que teimava em se esconder.
Saiu pra fora da porta, deu passos adiante e lançou o olhar sobre a escuridão ao redor e mais adiante, lá longe. Estava realmente tudo muito silencioso e triste, sem se ouvir a algazarra própria da natureza. Avistou os vaga-lumes e achou de uma beleza sem igual aquelas luzinhas voando de lado a outro, fazendo festa em círculo.
Olhou para cima e ficou imaginando se aquelas nuvens viessem carregadas e trouxessem as chuvas que toda a região precisava. E bastou esse pensamento para lembrar de muitas outras coisas que não estava preparada para o momento, mas enfim. Tinha que pensar no que fazer com aquelas vaquinhas magras que restavam, tinha que arranjar comida pra ela e pros animais, tinha de arranjar água pra beber.
Tinha realmente um monte de coisas a fazer a partir do amanhecer. E como seria bom se tivesse somente coisas boas para fazer, mas não. Já estava decidida com relação ao pequeno rebanho. Tinha que vendê-lo a qualquer preço e fosse como fosse. Com o lucro, ainda que fosse pouco, garantiria o alimento e a água, além de que não continuaria com a preocupação de alimentar aquilo que não podia.
Se seu pai estivesse vivo pensaria diferente, logo diria que deixaria morrer de magreza mas não se desfazia de jeito nenhum. Mas ele não estava mais ali para procurar outros meios de sustento. E ela precisava sobreviver.
Continua...


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: