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terça-feira, 22 de maio de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (27)

                                        
                                                          Rangel Alves da Costa*


Quem não dorme acorda sempre cedo. Outras vezes a noite em claro torna o cochilo do amanhecer num sono profundo, gostoso, dando vontade de não levantar tão cedo. Mas com Crisosta não aconteceu assim não.
Às cinco da manhã já abria a porta, já dava a primeira caminhada ao redor. Andando por ali de lado a outro, cumprimentando a natureza e o pouco vento que soprava. Passando perto de um velho e abandonado de carro de boi, deixado ao relento por seu pai debaixo de um pé de pau, percebeu algo que prontamente lhe chamou a atenção.
Aproximou-se um pouco mais e avistou uma formação diferente debaixo do rudimentar transporte agrestino. Era como se alguma coisa, pessoa ou animal, tivesse passado e deitado embaixo, pois o chão que serve de cama deixa suas marcas inconfundíveis. Contudo, o mais instigante viu a seguir.
Ao lado dessa cama ao relento avistou uma baleadeira, um tipo de peteca ou badoque usado pelos meninos da região para brincar ou atirar nas árvores e nos passarinhos. Era uma espécie de arma de brinquedo, com um pequeno pedaço de pau aberto em forquilha e uma borracha presa a cada ponta.
O seu uso era mais que difundido entre a meninada do lugar e desde os tempos mais antigos. Era só colocar uma pedrinha na borracha, puxar, mirar e arremessar. Quem tivesse mira no olho e a mão certeira dificilmente errava um arremesso. E que arma perigosa em mãos traquinas!
E de repente a fruta caída, o passarinho morto no chão, o preá bamboleante, o outro menino correndo choroso porque foi acertado. Pra isso é que ela servia. E agora ela lembrava de já ter avistado o seu amiguinho caçador com uma arma daquelas, trazendo-a sempre pendurada em seu calção.
Será que o danadinho fujão havia dormido ali? Por que ele chegou tão próximo e não bateu na porta para uma dormida mais digna? Será que estava com medo que ela descobrisse o que havia feitou ou com medo que ela o fizesse retornar imediatamente para seus pais?
Tudo indicava que aquela baleadeira era mesmo dele, pois tinha certeza que ninguém mais havia chegado ali com uma arma assim. E estava provado que era recente ali, que havia deixado exatamente por quem achou de pernoitar debaixo do carro de boi. Segurou a pequena arma, levantou o olhar adiante e aquela terrível aflição lhe tomando novamente o peito.
Oh, Deus dos desamparados, Deus dos inocentes, Deus dos que ainda não tem o devido discernimento, Deus dos abandonados, famintos, injustiçados, caminhantes, errantes pelos caminhos da tão difícil vida! Deus, meu Deus, mostrai um caminho para que eu possa resolver logo esse problema do meu amiguinho. Dizia a si mesma, com palavras tão audíveis pela natureza como por ela própria.
Com a baleadeira à mão, caminhou por lugares mais afastados, olhou mais detidamente para a mataria e até gritou que se ele estivesse por perto que aparecesse; ela era sua amiga e só queria ajudar. Mas nenhuma resposta. Voltou pra casa desconsolada.
Colocou a baleadeira em cima duma mesinha e foi fazer um café. Enquanto o aroma subia pelo ar lembrou que precisava fazer uma pequena lista daquilo que tanto necessitava comprar caso recebesse algum dinheirinho naquele dia.
Sentou à mesa de xícara na mão e começou a rabiscar num pedaço de papel: dois quilos de feijão, de arroz, de farinha e de açúcar; dois quilos de jabá; dois quilos de carne de porco e de gado; três pacotes de café; um quilo de sal; duas latas de óleo de cozinha; cinco pacotes de massa de milho; uma garrafa de vinagre; tempero e colorau. Além disso, um pacote de bala, um frasco de lavanda. Se lembrasse mais coisas depois acrescentaria.
Precisava comprar uns dois vestidinhos e uma chinela, além de outras coisinhas de mulher. Não tinha vaidade, mas gostava de ser e andar bonita. Mas era assim mesmo. Linda no seu jeito humilde de ser.
Continua...


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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