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sexta-feira, 25 de maio de 2012

CANTO DAS ALMAS (Crônica)


                                                          Rangel Alves da Costa*


Na noite fechada, no breu da escuridão, ouviu-se um murmúrio, um canto dolente que foi se espalhando pelos quatro lados de chão e pedra, de fogo e capim, que formavam a senzala. Logo a seguir ecoou o coro das vozes negras em cantoria para relembrar os sofrimentos e aflições de um dia.
“Chame o feitor, traga o capataz, onde está o capitão-do-mato? Quero aquele negro fugidio sangrando no mourão, gemendo no tronco; quero ver suas costas na carne viva para servir de exemplo aos que tentarem se misturar à escuridão e fugir pelos canaviais”.
Quando cai a noite de pouca lua ou a se a nuvem reina lá em cima, lá pra baixo do mercado do escravo, no mesmo porão onde os negros, ou bichos-homens, ou animais que falam, ficavam jogados até serem chamados no açoite para ver quem dava mais pela negra peça, hoje se ouve uma cantiga chorosa que dói nos ouvidos e no coração de quem a ouvir.
“Esse bicho aqui é bom, é sudanês, é banto, é da guiné, é da costa africana. Olhe os dentes brancos e sadios que carrega, tem a força de um touro e é de família escrava conhecida pelo sofrimento calado. Está assim meio triste pela viagem, pelo banto, e está assim com o corpo parecendo ferido pelos ferros que o aprisionava ao navio negreiro. Mas é negro retinto, escravo valioso. Vale muito. E se quiser levar uma negrada então o preço fica ainda melhor”.
Por dentro do mato, por entre a fileira das canas, por cima e por baixo das pedras que ainda continuam por lá, nos mourões fronteiriços, por cima da terra ainda manchada de sangue e suor, por toda vereda onde o pé negro marchou na sua lide diária, debaixo do açoite sedento, ainda hoje se ouve a música fúnebre das almas escravas que começavam a morrer ali.
“O negro safado correu no meio da noite e se embrenhou mata adentro, mas não deve ir longe não. Ele já é manco de um pé de uma ferroada recebida porque mereceu. Em nome da honra do engenho quero aquele negro rebelde de volta aqui. Chame mais três, chame quatro, cerquem por todo lugar, procurem por dentro de todas as moitas que encontrar. Assim que botar a mão naquele maldito arranque primeiro os dedos, depois corte um dedo de cada mão e deixe em carne viva por debaixo do pé direito. Depois traga ele descalço e amarrado ao cavalo, e parando de vez em quando pra dar cor no lombo preto”.
Lá pela ladeira do riacho, pertinho das pedras molhadas e amoladas que nem navalha, diante da fumaça eterna no fogão de lenha, embaixo das camas de varas, por cima do chão de capim servindo de leito, em frente e ao redor dos cacarecos que eram os pratos e os talheres, ainda se sente a presença da boca se abrindo para entoar a cantiga dos mortos, a toada de despedida, a canção do nunca mais existir.
“Pegue o arreio, pegue o chicote, pegue a ripa de prego, pegue o pau amolado, pegue a laçadeira, pegue a arma, pegue o grilhão, pegue a corrente, pegue o laço de sete nós. Abra o caminho pro tronco, abra a estrada pro mourão, abra a vereda pro cubículo das cinzas. Traga ele aqui, e traga também quem olhar piedoso. Preciso mostrar a esse revoltoso pra que serve o tronco e o açoite, a brasa e a ferroada, o gemido e a dor”.
Nos esconderijos do mundo, nos quilombos nos escondidos das serras, nas moradias debaixo do tempo, na vida ao deus-dará, na sorte quase entregue à morte, em todos os lugares onde os negros rebeldes e fugitivos que buscavam abrigo ainda ecoam o canto sem rima, sem brilho, sem estrofe, sem verso. Apenas um gorjeio misterioso e agonizante igual ao pio lamuriento do urutau ou mãe-da-lua.
“Essa negra não pode perder tempo dando peito a menino. Fure o peito, bote pedra na boca do chorão. Coloque a tampa de ferro na sua cara, bote pimenta no peito, se não der jeito pode arrancar os dois. Jogue o menino no mato, manda a mãe cortar cana, pegue a vara da cana e amole no lombo dela. Essa negra devia ter aprendido que aqui ninguém tem o direito de ser mãe nem pai, apenas de trabalhar, trabalhar, trabalhar...”.
E o som aumenta, o canto ecoa num refrão de gemido. Tocam os atabaques, os zabumbas, as caixas. Não, isso não é toque. É lombo de negro, é lombo de negro apanhando. Mas o som aumenta, ainda ouço esse canto açoite. E é canção de negro sofrendo, é sinfonia de negro morrendo.


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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