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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 18 de maio de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DA FÉ E DA RELIGIOSIDADE – IV

SER SERTÃO: DA ARTE DA FÉ E DA RELIGIOSIDADE – IV

Rangel Alves da Costa*


De tão envolvente que estava o relato, nem o velho nem o seu amigo se deram conta de que mais umas três ou quatro pessoas já estavam sentadas por ali ouvindo aquela conversação sobre a religião e os seus porões. Talvez passando rapidamente, ao ouvirem o nome do Padre Cícero decidiram se asseverar do que se tratava, tamanha era a devoção do povo em relação ao velho milagreiro do Juazeiro.
No mês de setembro, quando ainda se chora a morte do santo padre e o Juazeiro se transforma em local de peregrinação para milhares de romeiros, nos dias seguintes ao retorno destes para suas cidades nos paus-de-arara, que são velhos caminhões cobertos para transportar muitas pessoas, o que mais se vê pelas casas são as imagens do Padre Cícero, as fitinhas nos braços das religiosos e meio mundo de bugigangas que se traz de lá como lembranças, que vão desde rapaduras a aguardentes com a foto da estátua do milagreiro: Cachaça do Padre – beba com fé, fique em pé se puder!
Todo ano o velho recebia muitas dessas lembrancinhas, e até gostava, mesmo não sendo um apaixonado por santos que passaram sobre a terra e deixaram marcas enlameadas enquanto políticos. Com as pessoas ali, ouvindo tudo o que tinha a dizer, aumentava a sua responsabilidade como historiador ou contador de "causos" do sertão. E assim o velho prosseguiu:
Mesmo com os contratempos trazidos pelas recentes práticas em nome da religião, o sertanejo não afasta de si sua imensa religiosidade. Tanto é assim que o Padre Cícero é cada vez mais cultuado e de notável referência milagrosa. Pode até não fazer milagre nenhum, contudo se o povo se predispõe a acreditar não tem mesmo jeito, e a benção está feita, a cura conseguida e a vida entregue aos cuidados do santo do Juazeiro.
Outro que de repente tornou-se reverenciado como santo foi o Frei Damião, o capuchinho que levou grande parte da vida realizando santas missões pelos sertões nordestinos, pregando, orando e confortando, com sua voz suave e com alguns resquícios do linguajar italiano, aos muitos pobres e enfermos que buscavam na sua palavra esperança de cura e de salvação. Ainda em vida já era profundamente respeitado e adorado, tido ainda como responsável por diversas curas milagrosas. E depois de sua morte, no ano de 1997, na mais pura e inabalável fé nordestina, o Frei Damião tornou-se mais um santo sertanejo.
Como já lembrado, todos os anos, no mês de setembro, romeiros e peregrinos vão, submetendo-se a todos os tipos de transportes e até mesmo caminhando, rumo ao Juazeiro do Norte prestar homenagens, celebrar a memória, pedir proteção e agradecer as graças concedidas pelo Padre Cícero. Entoando cantos, lá chegam os romeiros em busca da grande estátua do seu protetor, assistindo missa após missa e espalhando pelas salas dos ex-votos fotografias, moldes talhados de partes do corpo, bengalas e tudo aquilo que lembre uma enfermidade que foi curada. Quando retornam para suas casas parecem cada vez mais refeitos na fé.
Mas a fé do sertanejo transcende, vai muito além do culto e da adoração. Em muitos lugares acredita-se que se a mulher, ao se deparar com uma com serpente peçonhenta, der um nó no cordão da saia , a cobra não se moverá até que alguém venha matá-la. Uma fita vermelha colocada no braço de criança evita debilitação e mau-olhado. Um galho de pinhão-roxo deve sempre estar pendurado na primeira sala da casa para protegê-la de qualquer mal. Chifre ou caveira de boi deve ser enfiado num pau e colocado na roça para evitar mau-olhado na plantação. Evita-se mordida de cobra, mesmo que se pise nela, se o indivíduo estiver usando uma medalha batizada de São Bento. Assim, rituais, amuletos, simpatias e toda uma série de crenças e tradições populares, servem para enriquecer ainda mais o universo que envolve a fé como forma de amparo contra as durezas da vida sertaneja.
Mais do que tudo, a proteção deve estar em casa, assegurada pelas imagens dos santos, pela vela acesa, pela velha bíblia em cima da mobília rústica, pelo quadro da Santa Ceia na parede. Assim pensa o sertanejo e assim ele faz.. Quando pode, nada mais bonito do que um oratório, mas isto virou preciosidade, difícil de encontrar. Colocado no quarto do casal ou na sala da frente, em cima de uma cômoda de madeira envernizada, no seu interior crucifixos e imagens de santos, é regozijo e fortalecimento para o espírito, é como ter a presença de um templo próprio para orações, para estar mais próximo do Deus sertanejo.
Eis a fé e a religiosidade de um povo que não se cansa em acreditar, mesmo que falsos profetas queiram iludir com ações e palavras aquilo que não se pode enganar: o povo humilde com a sua imensa fé.


Tendo exposto o que sabia, o velho sentiu-se de alma reconfortada. Também gostava desses mistérios e segredos da fé. Perguntou ao amigo se acreditava em Deus e este respondeu que acreditava na vida. Acreditando na vida tinha que fervorosamente amar a Deus. E o amigo retornou a mesma pergunta ao velho e este, antes de responder qualquer coisa, tirou um crucifixo do bolso e beijou.


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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