RÉUS DA VIDA
Rangel Alves da Costa*
Ontem, sexta-feira, dia 21 de maio de 2010, viajei até a cidade de Pacatuba, na região norte de Sergipe, para fazer a defesa de um cliente que seria julgado pelo tribunal do júri daquela Comarca, acusado pela prática de homicídio qualificado, um crime doloso contra vida capitulado no art. 121, § 2º, II, do Código Penal. Fato ocorrido em 2004, com o réu respondendo aos termos do processo sempre em liberdade e desde àquela época sob a minha defesa, somente agora fora colocado diante do Conselho de Sentença, à vista dos jurados para ser condenado ou absolvido.
Assim que saí de Aracaju, logo cedinho, por volta das 6:30 h. e tomei a rodovia que levaria à sede do referido município, pelas estradas, observando tudo ao redor como sempre faço quando viajo pelos interiores, via as paisagens se modificando a cada novo quilômetro que ia separando os centros desenvolvidos dos lugares empobrecidos. Mesmo num cenário verdejante pelas chuvas recentes, o que enxergava eram construções de beira de estrada, pequenas fazendas, acampamentos do MST, pequenos povoados e casebres espalhados por todo lugar, todos caracterizados pelo lado mais triste da existência humana que é a pobreza.
Certamente que adentrando pelas muitas estradas que cortam a rodovia é fácil de encontrar grandes propriedades com plantações de cana-de-açúcar e produtos cítricos, além de outras com muitos rebanhos e muita produtividade agrícola. Porém, na média geral, observando-se o todo, o que se tem realmente é uma população cada vez mais empobrecida, de feições tristes pela situação de vida e sem apresentarem grandes expectativas de futuro mais promissor. Nessas localidades, o índice de desenvolvimento humano – IDH, certamente é baixíssimo, desumano mesmo.
Pois bem, já próximo ao município, onde a pobreza mostra-se ainda mais gritante, eu ficava imaginando as contradições existentes, principalmente nos aspectos referentes à justiça criminal que logo mostraria suas feições nos debates no júri e a justiça social, aquela justiça humana e que diz respeito ao direito do povo de viver com dignidade, ali assustadoramente inexistente. Quer dizer, iríamos discutir sobre um fato praticado por um cidadão daquela região sem ao menos citarmos, num instante sequer, que a prática delituosa não nasceu do ato do agente, mas também, e principalmente, do mundo em que nasceu e cresceu.
Ora, se o homem é produto do meio, o contexto de miserabilidade imposta pelos governantes predispôs o meu cliente a ter um dia uma conduta contrária à lei, esta mesma lei, agora de patamar constitucional, que diz que é crime deixar que as pessoas nasçam e cresçam entregues à própria sorte. Naquela região nunca se soube o que são direitos fundamentais do cidadão, muito menos o que é dignidade, integridade e tratamento isonômico nas relações sociais.
Quando da realização da sessão do júri, por mais incrível que possa parecer, a acusação da promotoria se voltou basicamente para tais aspectos. Pincelou a conduta criminosa do meu cliente, acentuou nas acusações, e isso e aquilo, pediu sua condenação, mas a sua principal tese de acusação foi a pobreza e a ignorância do povo.
E como fez isso? Ora, simplesmente disse, jogou na cara dos jurados – todos da comunidade – que eles mereciam viver naquela miséria, serem pobres como eram, ter os péssimos administradores que tinham porque não sabiam o que era senso de crítica e de escolha, eram analfabetos porque não sabiam reivindicar, eram nada porque assim queriam. E agora pasmem: Naquele momento eles teriam de mostrar que não eram assim como ele afirmou votando pela condenação do meu cliente.
Do meu lado, me desdobrei defendendo a tese da legítima defesa, principalmente no seu aspecto da legítima defesa putativa, que é aquela afirmando que é isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Busquei provar por todos os meios que o meu cliente deveria ser absolvido por ter praticado um fato que somente existiu porque o outro já vinha dando causa há muito tempo.
No instante da votação não deu outra. A maioria dos jurados entrou no jogo da promotoria, resolveu que naquele momento não seria mais pobre e ignorante, que sabia votar e ser cidadão e, por conseqüência, disse que o réu era realmente culpado e o condenou, com a pena mínima mas condenou. E fez isso porque pensou que assim traria a dignidade perdida, espantaria a pobreza enrustida e tudo passaria a ser maravilhoso na vida. Foram na onda do promotor sem saber que todos continuarão réus pela vida.
Ao menos o meu cliente vai recorrer em liberdade. Quanto à liberdade deles não sei...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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