MOÇA FELIZ MUITO TRISTE
Rangel Alves da Costa*
Quem olhasse para o seu semblante, sua feição, logo diria que a mocinha havia dormido maravilhosamente bem, sonhado bons sonhos, despertado com ares da maior felicidade do mundo. E estaria falando a verdade, pois Marina naquela manhã se sentia altamente disposta e feliz, contente consigo mesma, com um grande sentimento de realização no espírito, convicta de que teria um dia maravilhoso, daqueles que nada ou ninguém consegue interferir para entristecer ou destruir.
Assim que levantou, disposta a sorrir para o mundo, leu o salmo do dia, fez outras orações, abriu a sua janela, olhou sua manhã, abriu sua porta, caminhou pelo seu jardim, colheu flores para enfeitar o seu lar, acendeu incensos, colocou Enya no som, foi tomar sol no solar, abriu os braços, ergueu a cabeça em direção ao sol e agradeceu a Deus por tudo, pelo dia, pela vida, por tudo. Estava feliz...
Que bom ter um dia inteiro somente para ficar em casa, andando aqui e ali, refletindo sobre amenidades, sem ter visitas a receber, tomar um bom vinho, colocar em ordem pequenas coisas. Desligou o celular e resolveu que não telefonaria pra ninguém do telefone fixo, esperava até que o mesmo não tocasse durante todo o dia. A campainha, esta se pudesse jogava fora ou desligava a fiação. Que ninguém viesse atrapalhar sua paz, sua felicidade, seu dia encantador. Bastava os sons da boa música, dos pássaros pelo jardim, daqueles zunidos próprios da natureza. Que barulhinho bom de se ouvir fazem as folhagens quando o vento vem cortando o dia...
No vestido tipo hippie, bem florido, leve e solto; cabelos como havia levantado, por isso mesmo mais bonitos ainda, resolveu ir até a padaria da esquina comprar queijos. Dizem que vinho com queijos é chique, e ela gostava disso; não de ser chique, mas de vinho com queijos. E assim que colocou os pés na porta para sair percebeu as cores da natureza modificadas. O dia que parecia ser de sol ia cedendo lugar a um escurecimento próprio de quando vai chover. A demora foi só retornar da padaria e a chuva começar a cair forte.
O que se há de fazer, pensou. Pode cair um verdadeiro temporal, podem zoar trovões e raios riscarem o céu que nada vai me fazer ficar triste, asseverou. Estava realmente feliz e decidida a continuar assim de qualquer jeito, com sol ou chuva, frio ou calor, com qualquer coisa que pudesse surgir. E para mostrar que não estava nem aí para a chuva que caía resolveu abrir uma janela e deixar que os pingos entrassem e molhassem o piso. Ora, coisa mais besta é se enraivecer com a chuva. Chuva é bom, limpa as ruas, lava o corpo e a alma, deixa a gente renovada, disse a si mesma. E foi abrir a janela, pensando até mesmo em tomar um banho de chuva.
Assim que escancarou a janela e as gotas misturadas ao vento molharam seu rosto, após passar a mão pelos olhos pôde enxergar, bem na parte de dentro do seu muro, numa pequena cobertura feita para abrigar cães, um menininho todo enroladinho nas próprias mãos, ali quietinho, pequenino e triste, se protegendo da chuva. De repente o menino olhou pra ela e ficou amedrontado e mais triste ainda, com medo da reação da moça feliz por ele estar ali.
Mas o que é aquilo, meu Deus, será mesmo o que eu estou vendo, ou será a chuva que está atrapalhando a minha visão? Perguntou-se a moça feliz. Já que estava mesmo com vontade de se molhar, resolveu sair para verificar de perto se o que tinha visto se confirmava. Assim que abriu a porta e foi se aproximando, o garotinho, acuado com um pequeno animal, foi logo dizendo: "Eu não pego nada de ninguém não minha senhora, sou estou aqui pra passar essa chuva e depois vou embora. Se a senhora quiser eu saio daqui agora mesmo, mesmo com essa chuva toda, mas só peço que não me machuque..."
E a moça feliz, ali em pé, no meio da chuva, se molhou mais ainda com as lágrimas que começaram a rolar dos olhos. A moça feliz estava triste, muito triste presenciando aquela cena, dentro dos muros de sua casa. "Não meu filho, pode ficar despreocupado que eu não farei nada com você não. Ou melhor, farei sim, saia daí e venha pra dentro de casa, se enxugar e vestir outra roupa. Assim você pode adoecer, vamos...".
Lá dentro de casa, enquanto esperava o garotinho tomar banho para vestir outra roupa, a moça chorou por um mês inteiro. A roupa que o menino ia vestir havia pertencido ao seu filho, antes que Deus o levasse por uma dessas fatalidades da vida. Agora ia vestir outra criaturinha que talvez vivesse abandonado pelas ruas.
Assim que saiu do banheiro, já de roupa enxuta e limpa, todo prontinho e contente, o garotinho perguntou à moça: "A senhora está triste?" E ela respondeu: "Não, meu filho, estou feliz, muito feliz".
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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