SER SERTÃO: DA ARTE DA POLÍTICA E DA POLITICAGEM – II
Rangel Alves da Costa*
De repente, a bodega pareceu minúscula com a chegada de mais e mais pessoas, que chegando ali para experimentarem da casca de pau com umbu ou uma perna assada de preá, se posicionavam pelos cantos, de olhos e ouvidos atentos para o que o velho dizia.
Teve um que falou baixinho, apontando o dedo para a porta da rua: "Olha ali o prefeito, passando acompanhado de sua comitiva de puxa-sacos". E o velho: "Deixai passar, deixai passar, é melhor que as coisas ruins vão passando e passando. Mas podem ter certeza de que os seus acompanhantes são muito piores do que ele. Piores porque não têm honra nem dignidade, e as pessoas que chegam a esse ponto, se submetendo ao solado dos sapatos desse homem não são dignos nem de viver próximos às pessoas de bem. Mas deixai passar, deixai passar...".
E o velho continuou com sua exposição sobre a política e a politicagem no sertão.
E disse o velho: Nesse sistema coronelista e mandonista, a política de muitas localidades foi repousando nas mãos de grupos familiares que se digladiavam constantemente. Desse modo, como quem está no poder adquire cada vez mais poder, os velhos comandantes foram, depois de saciados da tirania e do sangue, repassando suas lideranças para os seus descendentes. Hoje o filho é o prefeito, amanhã será o neto, depois outro da família, até que chegue um dia que nenhum será mais nada porque o ciúme e as brigas entre eles mesmos destruíram toda a força política e familiar. Mais tarde, talvez, o nome numa rua, num órgão público inexpressivo, na mente dos mais velhos, e só.
Os resquícios dessa época ainda estão por todo lugar. Lentamente os coronéis foram perdendo sua força de mando; o cabresto foi cedendo lugar a um assistencialismo barato; o povo que era tangido feito gado passou a comer na mão de outro tipo de político: o amigo do rei, ou seja, o representante do mandatário ou governante estadual no lugar. Como sempre acontece, o adversário também guardava para os seus eleitores uma cota de poder. O que é contra precisa ser alimentado para alimentar o seu grupo. Depois é só oferecer "doistões" é trazê-lo para o seu lado. Foi assim que funcionou e ainda funciona, disse o velho.
O alcance e a manutenção do poder no sertão exigiam toda uma série de características no político. Dentre tais características podemos citar: ser protegido por um político de renome estadual, algo que signifique poder agir impunemente, mandando matar, amedrontar, chantagear; fraudar eleições e mesmo assim ser aclamado vitoriosamente; usufruir abusivamente dos cofres públicos sem que sofresse nenhuma punição; ter ao seu lado as forças judicial e policial, e com isto fazer justiça com as próprias mãos ou segundo o seu desejo; desviar materiais, produtos e serviços da administração para si e para os seus, avolumando o patrimônio, sem que o silêncio do medo abrisse a boca para denunciar. A denúncia também não valeria nada; ninguém podia provar nada. Quem acusasse era logo chamado de mentiroso, por isso mesmo merecedor de retaliações ou "outras penalidades".
Praticamente as coisas continuam assim. A justiça, que com as suas pregações de moralização e repressão aos atos arbitrários da sociedade, parece que amolecia quando se tratava de punir políticos corruptos. Dizem até que autoridades do próprio judiciário também tinham suas cotinhas de agrados e recebiam na surdina alguns envelopes inocentes. Quando muito, averiguavam-se os fatos, manejavam todo um procedimento probatório, davam toda uma feição de seriedade aos ritos processuais e, de repente, os processos iam sendo protelados, caminhando a passo de tartaruga, até serem esquecidos pelo povo que foi roubado e depois engavetados, arquivados.
Quando um político ou outro sofre alguma sanção ou punição, é afastado ou retirado do poder, é fácil observar e logo deduzir que ele é politicamente adversário do governador do estado; não come na sua mão e mesmo assim consegue sobreviver politicamente. Isso soa como uma afronta muito grande e muitas vezes, mesmo que o homem até que seja um político mais ou menos honesto, logo será enlameado pelas influências do governante maior. Para cortar suas asinhas o governador manda logo acusá-lo de alguma coisa, da prática de algum ilícito administrativo. Nesses casos, geralmente o único crime é a convicção política de adversário, de pessoa de coragem que não quer se submeter nem subjugar.
Seja de que modo for, o poder no sertão é algo buscado de forma desmedida. Só quem conhece os bastidores de um pleito eleitoral nestes ermos de sol escaldante é que não fica boquiaberto, não fica abilolado com o que é capaz de ser feito. Capaz não, tudo é feito sem mágoas e sem medo dos castigos divinos. O mais simples e dito correto dos homens pode se transformar num traidor potencial. A beata mais varredora de igreja só vai lá pra rezar para o seu candidato. O próprio padre, nos sermões, ataca uns políticos e defende outros. Não é difícil ele mesmo estar usando o púlpito da igreja como palanque para ser candidato mais tarde. Ainda bem que ele sabe os caminhos que levam ao inferno muito mais do que os outros.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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