SER SERTÃO: DA ARTE DE CURAR – II
Rangel Alves da Costa*
Quando o velho se preparava para dar prosseguimento à palestra sertaneja, chegou um garotinho com uma bolsa cheia de araçás bem amarelinhos, colhidos naquela manhã, e uma sacola maior contendo umbus madurinhos e adocicados. Era presente seu para o amigo. Experimentou alguns ali mesmo e ofereceu duas porções para que fizessem das frutas acompanhamento do aguardente com raiz de pau.
Até experimentou um pequeno gole, mas antes de voltar ao assunto resolveu fazer um rápido aconselhamento: "Antes que me esqueça, preciso dizer que uma das coisas mais importantes que vocês podem fazer para suas famílias é ter no quintal de suas casas, em qualquer cantinho que der, uma pequena plantação de plantas medicinais, com essas espécies que tanto tem por aqui. Somente com o remédio certo e garantido que é oferecido pela própria natureza vocês poderão ter uma verdadeira farmácia verde em casa, a qualquer hora do dia ou da noite, e sem precisar estar batendo em porta de político algum. Há muito que deixei vidros, injeções e comprimidos de lado e só tomo o chá apropriado pra tudo que queira me aparecer. Acreditem no que digo, pois a horta medicinal é o santo remédio. Quem não conhece o mastruz, que é bom pra tudo?".
Todos concordaram com a receita de saúde do velho, e este prosseguiu com o que vinha relatando anteriormente:
Com a distribuição de óculos acontece quase a mesma coisa. Mais uma vez o político sai com um saco de óculos, de todos os tipos e de todos os graus, em busca de eleitores de pouca visão, na boa expressão da palavra. Os tais óculos são comprados no atacado, por quantidade, novinhos e até protegidos por uma bolsinha plástica com as identificações do político pai dos pobres meio cegos e meio sem se querer enxergar.
Como dificilmente essas pessoas fazem qualquer tipo de exame oftalmológico e são diagnosticadas pelo próprio político ou assessores, o problema é resolvido em poucos instantes, como por sorteio, bastando colocar a mão na caixa ou saco de óculos e retirar de lá uma nova visão, um verdadeiro milagre. Com a advertência de que os efeitos dos óculos concedidos só chegam com mais tardar, os eleitores saem por aí tropeçando nas suas inocências, com faces totalmente irreconhecíveis pelo tamanho, espessura e desproporcionalidade do objeto de beleza ocular.
O que se observa depois são pessoas que têm miopia ou vista curta usando um grau que nada tem a ver com o seu problema, apropriado que é para astigmatismo ou perturbação de visão à distância. Às vezes, por mero descuido do assessor e na pressa de fazer o outro enxergar bem, ele mesmo vai pegando lente por lente e perguntando "tá vendo agora, tá vendo agora?" e vai montado óculos que se tornam em verdadeiras armadilhas. Muitas quedas e lesões já foram causadas assim. E mais de uma vez óculos doados por políticos já deixaram pessoas completamente cegas. O diagnóstico que se faz é que essas pessoas já eram completamente cegas, politicamente, quando enxergavam.
Até hoje, que tanto se fala em progresso, as coisas continuam assim. O político é eleito, arranja verbas e constrói um hospital bonito, superfaturado até no grão de areia, espalha postos de saúde pelas localidades mais distantes e logo começa a despejar conversa pelos quatro cantos que a saúde no seu município é nota dez, que ninguém nunca fez tanto quanto ele pela saúde e outros tralálás da vida. A prefeitura possui não se sabe quantas ambulâncias, os melhores médicos foram contratados, enfermeiro tem pra não acabar mais. Contudo, tudo conversa fiada, estória de trancoso, conversa pra boi dormir.
Na verdade, no hospital, que sempre é pequeno para atender a comunidade, não é gasto nem a metade do que a verba que todo mês é repassada. Os médicos, quando existentes, nunca estão no município e muito menos no local de trabalho. Os enfermeiros que porventura aparecem para trabalhar, ou ficam numa salinha falando da vida dos outros o tempo todo ou fazem do local de trabalho um salão de beleza, com trejeitos, manicura e pedicura pra todo lado. Os pacientes, coitados, que tenham paciência mesmo ou clemência de Deus.
Quando o desrespeito pela vida humana é o que mais caracteriza um administrador municipal, basta que o próprio comece a espalhar que tudo vai bem para a realidade mostrar que é o contrário, que tudo vai mal. De nada serve um hospital sem médico atendendo o tempo inteiro, sem enfermeiros capacitados e dispostos, sem remédios para as enfermidades mais usuais. De nada serve um hospital cheio de pacientes, morrendo por omissão, e um administrador dizendo que a saúde é dez. Dez, vinte, trinta mortos talvez, porque o vocabulário do político enfeita até a desgraça.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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