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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 1 de maio de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE NAMORAR – II

SER SERTÃO: DA ARTE DE NAMORAR – II

Rangel Alves da Costa*


O velho remexeu pelos bolsos, escarafunchou no meio de papéis e documentos e encontrou uma velha fotografia toda embrulhadinha num plástico já amarelado. Olhou todo saudoso; ninguém sabia quem era; ninguém precisava saber. Essas coisas do coração só competem a quem ama. Tomou uma golada de limpinha com umburana – chega estava apurada, boa, amarelada, descendo ardente mas gostosa – e depois de limpar os beiços continuou suas explanações sobre a arte de namorar no sertão. E disse o velho:
Se um rapaz se engraçava por uma moça e desejava cortejá-la, depois que os olhares dela demonstravam interesse, o passo seguinte do moço era pedir o consentimento dos pais. Com a afirmativa positiva destes, logo eram impostas algumas condições para que o namoro pudesse efetivar-se. Neste arrastar de asa, o moço teria um horário determinado para chegar à casa da donzela, geralmente às sete horas da noite, ficando por lá até perto das nove. Naqueles tempos deitar às dez horas já era ir dormir muito tarde.
Quando chegava na casa da jovem, o apaixonado já encontrava três cadeiras bem posicionadas, duas dispostas lado a lado e outra um pouco mais afastada, numa distância estratégica e que não desse para ouvir tudo aquilo que os pombinhos conversavam e planejavam para um futuro recheado de crescente e fiel, fidelíssimo amor.
Porém, mesmo a mãe não podendo ouvir os juramentos e promessas mútuas, ainda assim ela não se descuidava um só instante de estar a par de tudo que estava se passando ali, nos gestos extrapolados, nas aproximações mais perigosas. Mas que perigo haveria meu Deus? Tinha daquelas que até levavam para a sala uma garrafa de café com xícaras que era pra não sair do local um só instante, talvez com medo que o bicho-papão papasse a sua filha ali mesmo. Foi por isso mesmo que Marina toda noite colocava sonífero no café da mãe. Dizem que a senhora roncava igual uma bacurinha.
Certa feita, de tanto a mãe ficar olhando para dois pombinhos pelo canto do olho e querendo a todo instante dizer uma palavrinha ao rapaz, uma mocinha teve a coragem de perguntar à sua própria genitora se ela estava interessada no seu namorado, se queria namorar com ele. A velha deu um chilique, desmaiou e foi pior: a responsabilidade pela vigilância passou a ser do pai, que só queria falar em plantação, melancia, espiga de milho, arado, enxada e coisas desse tipo. Foi pior, muito pior. Um dia o rapaz não agüentou mais tanto trelelê de roça e de terra que resolveu fugir com a mocinha no outro dia mesmo, logo cedinho.
Beijar somente no rosto, na chegada e na saída; nada de agarra-agarra, nem de passar a mão naquilo ou naquilo outro. Namorar de saia, mas de jeito nenhum; com blusa mostrando demais as formas dos peitos pior ainda. De vestido sim, mas olha lá, pois tinha que estar bem abaixo do joelho, de modo que ela sentada a roupa não subisse muito nas pernas. Naqueles tempos era assim e muitos dos pais de vocês tiveram que namorar assim, dizia o velho.
Em muitas casas as cadeiras ficavam geralmente na salinha de entrada. Os dois sentavam numa das laterais e a mãe nas proximidades da janela, pois, se por um lado queria vigiar a filha, por outro lado não podia deixar de ficar bisbilhotando a vida dos outros, prática vergonhosa essa que se tornou cotidiano desde que o mundo é habitado por pessoas que não têm o que fazer. Isto também servia como estratégia: se alguém falar de sua filha, alguma razão encontrará para falar mal das filhas dos outros também. Ninguém sabe mais da arte da fofoca do que o sertanejo. Quando não sabe inventa.
Foi esta preocupação dos pais que resguardou por muito tempo a imagem de pureza daquelas lindas mocinhas, mesmo que na imaginação destas tudo fosse diferente, prevalecendo sempre a vontade e o desejo de um encontro às escondidas, de um despojamento à beira do riacho, de troca de carícias mais íntimas no fundo da igrejinha ou na casa de uma amiga alcoviteira, ou seja, aquela de má pudor que serve de intermediária para encontros amorosos.
O relacionamento nascido sob os olhos atentos da mãe gerou, de certa forma, bons frutos. O rapaz que se submetia a esta forma de namoro só poderia ter as melhores intenções. Quando noivava, nada mais significativo do que esperar um casamento com lua-de-mel de verdade e tudo mais que a mulher dos sonhos podia oferecer.
Quando as alianças eram colocadas nos dedos era como se já estivessem casados. O respeito era máximo. A moça começava a bordar panos para o futuro lar; o rapaz trabalhava de sol a sol para juntar economias para as despesas futuras. Assim, todo o dinheirinho ganho servia para duas coisas básicas: comprar utensílios domésticos e fazer um "pé-de-meia", quer dizer, juntar algum trocado para o que pudesse ocorrer.


continua...




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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