SER SERTÃO: DA ARTE DA POLÍTICA E DA POLITICAGEM – I
Rangel Alves da Costa*
Certa feita, numa daquelas tantas vezes que o velho tomava seu traguinho na bodega, olhou para as paredes cheias de folhinhas e retratos de políticos, e ficou por muito tempo cismando, absorvido em pensamentos que somente ele mesmo poderia dizer até onde iam naquela viagem.
Já ia se despedindo dos presentes para dar uma volta pelas paisagens das redondezas quando um daqueles amigos pediu-lhe para que contasse qualquer "causo", qualquer história, qualquer coisa assim. Disse que dava prazer em ouvir quem sabia do passado e presente como ninguém, e quem sabe até mesmo do futuro. E o velho respondeu-lhe que seria breve, pois sobre o que poderia falar, por mais instigante que fosse, era assunto não apreciado por muitos, causador de tantos ódios e disputas, mas que não deveria ser assim. E começou a falar:
Existe uma coisa chamada política que, mesmo dentre todos aqueles que se dizem políticos, poucos sabem o que realmente é. Aqui no sertão e redondezas garanto que nenhum. Não se trata dessa política partidária, a politicagem cujo pai é a mentira e a mãe a safadeza. Trata-se da política de verdade, no melhor termo da palavra.
Política é atividade que consiste na busca de mecanismos idôneos para o cumprimento dos fins de um grupo social; é arte de governar povos com seriedade e respeito; é poder emanador e fiscalizador das normas mais elementares de sobrevivência e convívio social; é arte de gerir os negócios públicos; enfim, é o conjunto de ideias que orientam o governante para melhor realizar suas funções, procurando, com isso, alcançar o progresso social, econômico e político. Dizia o velho.
No outro lado da moeda, como é do conhecimento de todos, o que se verifica é a política descarada, na sua mais suja e abjeta concepção, onde a sede, a vontade cega de poder, torna-se instrumento da classe dominante, que usa todos os tipos de recursos, artifícios e manobras para que os fins dessa mesma classe sempre prevaleçam. Esta é a chamada política mesquinha, de interesses pessoais, podendo também ser chamada de politicagem, politicalha ou esculhambação e pouca vergonha mesmo.
É sabido por todos que a política no sertão nunca foi coisa pra gente miúda, sem sangue nos olhos, sem destemor. Safadeza sempre existiu, mas uma imoralidade levada a sério, digamos assim, partindo das mãos e do mando do coronel, do latifundiário, dono de muitos currais de animais e de votos. Botava o povo no cabresto e daí mandava fazer o que bem desejasse.
O sistema eleitoral implantado pelas forças políticas de antigamente possuía um regime próprio segundo os grupos interessados em cada localidade sertaneja. Os eleitores não tinham opções: ou declaravam abertamente os votos para uma ou outra facção ou corriam o risco de morte. Logicamente que se afirmassem serem partidários de um grupo, este lhes assegurava proteção contra as perseguições do outro. Assim, se declarados, mesmo que sob ameaças, apaixonados eleitores, a mão forte e altiva do líder colocava para sua proteção jagunços e homens da mesma estirpe, armas e munição. E um quilo da farinha pra fazer papa de água...
O sertão pobre, desamparado, jogado à própria sorte, tinha que se submeter a esse aviltamento filho do mandonismo. Infelizmente não havia outra saída. A pobreza, a fome e o medo submetem e subjugam. Toda a vida, todo o ganha pão, estava sob a sujeição do mando da arrogância política e suas práticas incivilizadas. Contrariar o que havia sido imposto era o mesmo que querer deixar filhos órfãos nas mãos de um destino de sangue, pois o sertão tinha esse sabor e essa cor, vertente vermelho, para os que não continuassem cumprindo com sua submissão ao mandonismo.
Justiça Eleitoral, mas que Justiça Eleitoral? Idoneidade e independência passavam a milhares de léguas distantes do sertão. As fraudes sim, estas pareciam doenças contagiosas que atacavam sempre em períodos eleitorais. O mal foi tão forte e devastador que até hoje não se encontrou uma cura. Dizem que a aplicação da lei é bom para tais casos, só que a tal lei está somente como numa bula de remédio, que é difícil de se entender e muito mais de ser aplicada.
Mas naqueles tempos era muito, mil vezes pior. Só que, como disse antes, as roubalheiras eleitorais contavam com a conivência dos próprios aplicadores da lei e de gente lá de cima, no primeiro patamar de poder no país. Ora, se eles dependiam desses coronéis para se manter no poder jamais iriam combater suas práticas, mesmo que deslavadamente vergonhosas.
Outras vezes, o reconhecimento do candidato vencedor não cabia, de jeito nenhum, às comissões apuradoras. Estas não tinham que reconhecer nada, apenas confirmar a ordem superior, ou seja, dizer que fulano ou beltrano foi o vitorioso naquele pleito. Quem se achasse prejudicado, roubado, que procurasse seus meios de contestação. Assim, o que perdia acusava o outro de fraude, enquanto que o acusado não queria ver sua eleição ameaçada. O único jeito – e isso ocorreu muitas vezes – era resolver tudo na bala mesmo. Resultado: o lado que matasse mais e deixasse o outro moralmente enfraquecido saía vitorioso. Muitas vezes foi assim.
continua...
Advogado e poeta
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