SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 30 de maio de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DA MORTE – Final

SER SERTÃO: DA ARTE DA MORTE – Final

Rangel Alves da Costa*


No dia anterior à sua morte, no seu íntimo sensível, compassivo, sentimental e afetuoso, o velho havia sorrido e chorado. Nunca lhe havia despertado tantas sensações como nesse dia. A cidade estava em festa. Três dias de missas, batizados, casamentos, vaquejada, forrós de pé-de-serra e bailes nos clubes. Em todo lugar uma comemoração, vitrola tocando e bebidas feito água de bica. E tudo estava apenas começando.
Sorriu em ver o povo animado, brincando, passeando, tomando cerveja e cachaça. Sorriu com o caminhar trôpego das mocinhas, cujo tamanho das botas fazia que ficassem parecendo sariemas, aves das canelas longas e finas. Não deu para não sorrir quando uma passou toda desajeitada, com uma bota apertada num pé e a outra na mão. Sorriu quando deu a ventania e levantou a saia de muita gente. Teve uma que tinha esquecido de vestir a roupa de baixo. Quando uma beata desmaiou por causa disso, foi então que ele sorriu ainda mais.
Mas o velho chorou. Chorou quando soube que duas famílias não puderam batizar os filhinhos porque não tinham dinheiro para pagar o batismo, nem elas nem os padrinhos, e por isso mesmo o padre deu ordens para que nem aparecessem na igreja. Chorou quando soube que este mesmo padre havia quebrado a imagem de um santo na cabeça de um fiel, só porque este foi pedir para que os sinos da igreja anunciassem a morte de sua avó. Dia de festa não é dia de morrer, disse o padre, e como o homem insistiu levou uma "santãozada" na moleira.
O velho chorou ainda quando um grupo de mocinhas, das mais ricas e insuportáveis da cidade, ao deparar-se com uma jovem humilde, vinda de um povoado e vestida na melhor roupinha, começou a desfazer desta com palavras revoltantes e gestos desmedidos e deseducados. E quando esta jovem chorou, foi aí que ele chorou ainda mais.
Como não era de dormir cedo, ficou por ali, sentado num banco da praça, esperando a meia noite chegar e voltar para casa. E foi o que fez. Morava sozinho, um pouco afastado do centro. Chegando em casa, comeu o pão, bebeu o café, pitou o rapé e deitou. Pensou no que havia visto e ouvido; pensou naquelas palavras que um dia haveriam de ser ditas; pensou no povo em festa, nos que pensam que a vida é somente uma festa, no que acontece quando a luz apaga; pensou e pensou, e adormeceu. E morreu...
Logo cedo o seu amiguinho foi levar o leite. O menino chamou; muitas vezes repetiu o chamado, e nada. Voltou para casa e foi avisar ao pai. Momentos depois a porta era forçada e aberta. Lá dentro, no único quarto, num colchão estendido no chão, o velho parecia dormir feliz. Parecia...
Uma cota entre amigos fez com que um rústico caixão pudesse ser comprado. A vizinha de frente providenciou umas velas; o vizinho do lado trouxe uma cruz com a imagem do Senhor; a vizinha do outro lado arranjou umas flores. Tudo foi colocado no seu devido lugar. No íntimo dos mortos, se é que o desvanecido semblante pudesse agradecer, o velho parecia grato. Mas se pudesse falar, e para alguém quisesse dizer obrigado, não encontraria ali mais uma só pessoa. Um por um todos foram saindo, alegando sempre outros compromissos. Afinal ainda era dia de festa. O último a sair deixou a porta aberta. Na varanda da casinha somente o velho, o silêncio e a solidão.
Porta aberta, vento vivo e apressado, uivos e vozes de folhas e galhos arremessados.
Porta batendo, velas acesas, vento soprando, velas apagadas.
Porta fechada. Lá dentro a escuridão, o silêncio e a solidão. A morte.
Ninguém precisa de uma mão que reabra a porta, se a morte tanto faz e a festa é o que importa.



FIM




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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