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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 5 de maio de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE CONVERSAR – II

SER SERTÃO: DA ARTE DE CONVERSAR – II

Rangel Alves da Costa*


A praça estava propícia para o bate-papo, para o diálogo, para jogar conversa fora, como se diz no sertão. Tudo ainda estava muito calmo, sem a chegada das crianças com os seus carrinhos, correrias e suas bolas, nem com o vai-e-vem e o zum-zum-zum-zum das mocinhas e rapazolas nos seus flertes cotidianos. A única coisa que poderia realmente atrapalhá-los a qualquer instante era uma nuvem carregada que se aproximava. Mas no sertão isso se chama ilusão de ótica, pois só é possível apenas pensar que está vendo, mas nunca acontece de verdade.
Ali sentados, o velho e o turista, em poucos instantes, já estavam parecendo dois amigos. O rapaz primeiro pediu licença para gravar, depois para tirar umas fotografias e depois ainda para filmar. O velho só exigia que desse tempo de ajeitar, de pentear sua cabeleira branquinha. E vez por outra ainda fazia umas poses que lembravam os coronéis retratados com a família nas escadarias dos casarões coloniais. Era uma seriedade só. Interessante esse velho, guardando consigo um orgulho sem maldade alguma. Ele merecia ser assim. Talvez somente ele naquela região.
Depois das muitas poses e gestos, o rapaz pediu que ele falasse mais sobre coisas e causos sertanejos, o que lhe viesse na telha. Mas o velho relutou e disse que gostaria mesmo era de dar continuidade ao que já estavam conversando, que era um proseado sobre o falar sertanejo. Mesmo assim adiantou que muitas coisas que poderia falar o turista já sabia, pois tudo era uma questão de estilo de linguagem, de variações no linguajar de indivíduo para indivíduo. E como ele era estudado certamente conhecia tudo isso em profundidade. Mas prometeu que dentro do contexto do sertão falaria o que sabia, logicamente dentro dos seus limites de autodidata. E começou a expor suas ideias.
E disse o velho: É fato corriqueiro ouvir-se falar que a língua de um povo diz muito sobre a sua personalidade. Como consequencia o dialeto, a variedade regional da língua, seria sua feição. Entretanto, é preciso observar quando os modismos influenciam ou não no falar, pois mesmo no sertão, onde pressupõe-se um linguajar regionalista, através do dialeto caipira, de repente vê-se uma fala absorvida à força, um querer imitar forçadamente o blá-blá-blá sulista. Assim, traz uma forma emprestada de expressões que, muitas vezes, nem eles mesmo sabem o significado. Por isso mesmo é que no sertão, em termos de linguagem, interessa mais a verificação dos usos conflitantes dos regionalismos e das gírias, por incrível que possa parecer.
O regionalismo deve ser entendido como a linguagem característica de uma região; e, neste caso, a maneira especial ou diferente de falar no sertão, baseada nos costumes e tradições. A linguagem é um dos aspectos mais próximos possíveis da realidade sertaneja. Daí que aquele que não está acostumado com a fala de muitos dos moradores da região agrestina, ao travar um diálogo com estes vai achar dificuldades de compreensão e vai, como sempre acontece, simplesmente fingir que entendeu ou, o que é pior, desnortear negativamente o que pensa ter ouvido.
A gíria, infelizmente também uma praga que se alastra pelo sertão, é a linguagem fruto dos modismos, das malandragens e malandros, dos drogados e outros safados, com a qual evitam ser compreendidos pelas outras pessoas, principalmente as pessoas de bem. É peculiar aos jovens descomprometidos com a boa formação, que trazem calões de músicas abomináveis, de péssima qualidade, e de programas televisivos no sentido de insinuarem que convivem com a moda, com o novo, que estão na crista da onda. Mas que novo é esse, meu Deus, quando o que se vê é uma geração totalmente perdida diante de uma vida que nunca é encontrada.
Quem dera meu Deus, que essa onda fosse passageira e cumprisse o seu percurso como lição da natureza: vem, ensina, volta e depois retorna para levar os que não quiseram aprender! As coisas são assim, mas essa juventude perdida parece cegar cada vez mais para tudo. Pergunte a eles o que é fumar baseado, o que é ser camisa dez, o que é estar de larica, o que é nóia, o que é mocó, qualquer coisa que envolva gíria de drogas, que todos eles saberão responder. Mas por outro lado, se perguntar quem foi Leonardo da Vinci ou Jorge Amado, sobre as Cruzadas ou por As Guerras Guaraníticas ou Canudos, duvido, dou até minha cara a tapa se algum deles souberem dizer alguma coisa. Sobre Canudos talvez digam que são uns objetos que servem para usar droga, através do canudinho. Infelizmente é assim, e o pior é que a tendência é se tornar pior.
O pior nisso tudo – dizia o velho – é que os jovens adeptos das gírias nem sempre sabem o que falam, ridicularizando-se sem saber o que dizem. Por essa ignorância é que os outros tiram a maior chinfra, como eles mesmo dizem.
E o turista, muito admirado com o relato do velho, pediu licença para interromper um pouco e perguntou como ele sabia daquilo tudo. E o velho simplesmente respondeu que quem não quer aprender sobre isso é porque não quer enxergar a realidade.


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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