EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 1
Rangel Alves da Costa*
A Bíblia Sagrada estava aberta em cima da mesinha do quarto já escurecido pelo avanço do entardecer. O vento que entrava pela janela agitava as folhas do livro sagrado, deixando incerto o local onde havia sido lido pela última vez. No canto do quarto, colocado no chão, um resto de vela ainda aceso, mas já irradiando suas últimas chamas. A porta estava entreaberta, e quem saiu dele talvez voltasse logo, ou não, mais tarde ou nunca mais.
Mas o que se podia ler naquele momento nas páginas inconstantes da bíblia? Antes que o vento soprasse mais uma vez, se verificaria o que se segue, no percurso próprio de um Evangelho, pois aberta naquele instante logo no início de uma mensagem de boas novas, que é o próprio evangelho, com suas lições de alegria, fé, dor e sofrimento:
Muitos quiseram deixar escrito nas páginas da história os feitos empreendidos na vida. A maioria buscando preservar somente as grandes realizações, aquilo que foi visto pelos demais como construções positivas e que trouxeram satisfação pessoal e atiçaram as vaidades próprias dos seres humanos.
Somente uma pequena parcela se contentou em mostrar suas realizações no contexto das contradições, das perdas e ganhos, nos seus aspectos positivos e negativos. E um destes indivíduos, que jamais procurou esconder nada do que era, do que fez, do que faz e do que tem como esperança chama-se Lucas. E esta é a história de Lucas, ou a história do mundo que abraçou Lucas, segundo o seu próprio testemunho.
Nos tempos passados, num tempo em que os homens eram felizes, houve um humilde artesão por nome de Erasto, sertanejo e de família pobre, que sustentava sua família com a feitura artesanal de celas, estribos, arreios, alpercatas, gibões, chapéus, enfim, tudo aquilo que era possível fazer com o couro curtido de animais. Cada peça produzida, individual e prazerosamente, infelizmente era vendida por um valor muito abaixo do que realmente merecia. Mas tinha de ser assim, pois havia a mulher e os filhos para criar.
Sua mulher, descendente da família mais antiga do lugar, chamava-se Isaura. Mesmo com as marcas impostas ao corpo e ao rosto pela vida dura, ora lavando roupas, ora prestando serviços domésticos para outras famílias, ou ainda cuidando do pequeno roçado e dos poucos animais que possuíam, sem falar nos filhos que davam um trabalho danado, era uma sertaneja bonita e altiva, mulher de encantos que tanto alegravam o coração do esposo.
Ambos eram justos diante de Deus e observavam irrepreensivelmente todos os mandamentos e preceitos do Senhor. O respeito às coisas sagradas, a fé incontida e a veneração às palavras e aos ensinamentos do Senhor tornavam aquela humilde moradia num lugar sempre cheio de alegria e esperanças, mesmo que as adversidades estivessem à espreita esperando o momento oportuno para desestabilizar a felicidade. Não conseguiria pois eles viviam sob o manto divino, tinham certeza disso. E para agradecer essa proteção eram sempre fiéis às lições do seu Deus.
Tinham dois filhos, o menorzinho, que era Lucas, e a mais velha, chamada Lúcia. Para que seus filhos crescessem com saúde, felicidade, paz e distantes das más influências das realidades ao redor, assim que podia, e sem ter dia nem hora certa para isso, Isaura ia até a igreja do lugar onde moravam para fazer orações, reverenciar o seu Deus e pedir proteção e paz para todos, não só os de casa, mas também para todos da comunidade e pela vida afora. Acendia uma vela, assegurava continuar seguindo fielmente os mandamentos divinos e as lições cristãs e prometia voltar assim que pudesse, cada vez mais cheia de alegria e fé. Quando podia o seu esposo lhe acompanhava. Nas missas dominicais os dois eram presenças garantidas.
Alguns anos se passaram, com os dois filhos já crescidos, um belo rapaz e uma linda moça, os pais já envelhecidos temiam ter de partir sem a certeza de que aquelas duas vidas estavam realmente prontas para enfrentar o mundo sozinhas. Lições não lhes faltaram, o próprio mundo, através dos outros, estava de páginas abertas para ser lido. Tinham a certeza de haverem feito o possível e o melhor, mas, enfim, havia sempre o temor de que aquelas duas crianças – ainda viam os seus filhos adultos como crianças – tomassem outros rumos que não por aqueles caminhos tantas vezes ensinados.
Numa tarde, enquanto Isaura acendia uma vela em cima da mesinha que servia como verdadeiro altar da família, pois lá estavam a bíblia e a imagem de Cristo crucificado, apareceu-lhe então um anjo do Senhor, em pé, à direita da mesinha. Vendo-o, Isaura ficou perturbada, e o temor assaltou-a. Mas o anjo disse-lhe: Não temas, mulher de grande fé e bom coração, porque tenho um recado para você e seu esposo. Brevemente vocês partirão e é preciso que a mesma devoção que vocês sempre demonstraram ter os seus filhos continuem tendo, para que este lar continue sempre abençoado por Deus.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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