SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA - I
Rangel Alves da Costa*
O velho achava bonito, apreciava pela novidade e não duvidava do quanto importantes eram os modernos meios de comunicação, tais como o computador, o telefone celular, o fax e tudo mais, mas não possuía nenhum destes, nem mesmo televisão e telefone residencial, somente um radinho de pilha, desses de bolso mesmo. Não tinha porque não podia adquirir, comprar nada que ameaçasse ter todo santo dia o pãozinho com o leite. A feirinha era coisa pouca, quase nada.
Comprar fiado nem pensar, nunca quis cair numa besteira dessas, principalmente porque sabia que certa vez um conhecido teve que vender uma casa, com móveis e tudo, só porque não teve dinheiro pra pagar as prestações de uma televisão que a mulher encegueirou de ter. Ou ele comprava a dita televisão ou ela fechava o balaio; e realmente fez greve do bem bom e ele, coitado, aperreado, com vontade de se esfregar, teve que se endividar.
Não pôde pagar o carnê e a dívida foi aumentando até chegar a um dinheirão. Então o dono da loja, que era um velho conhecido seu, colocou na justiça e o juiz mandou que ele pagasse tudo, com juros e correção, e mais um tal de honorários, em dois dias. O homem só faltou correr doido, mas no fim de tudo perdeu a casa que tinha, com tudo que tinha dentro – até a maldita televisão -, e uns dias depois a mulher, que achou melhor assistir televisão em outra freguesia e nos braços de outro.
Assim, o velho fugia de débito, do compromisso de ter de pagar certinho todo mês. O que recebia como aposentado era tão pouco que não podia se dar ao luxo de nada. Mas um radinho de pilha sim, este não tinha jeito de não ter. Era o seu eterno companheiro, de quem ouvia as palavras quando estava sozinho, falando baixinho ali no bolso da camisa, porém ligado somente nas horas dos noticiários, das entrevistas políticas, das informações sobre as novidades pelo mundo afora. Fato novo, notícia nova era do que mais gostava, mesmo que já não se surpreendesse com mais nada. Estão dando nome novo para o que sempre aconteceu, mas já vi coisas bem piores, era o que sempre repetia.
Num desses dias de sol a pino, que de tão quente estala ovos nas pedras do calçamento, o velho estava com alguns amigos sentados embaixo de uma árvore na praça principal, protegidos por uma sombra calorenta e ouvindo o noticiário no pequeno rádio. Este, numa das notícias, informava que mais uma vez havia sido constatado por estudiosos que o subdesenvolvimento é o maior indicador mundial para o crescimento da... De repente, num impulso, o velho desligou o rádio indignado, corando de raiva. E foi logo esbravejando:
"Ora, quando se quer fato novo vem este dizer o que todo mundo já sabe, que o subdesenvolvimento é pai e mãe da fome, da miséria, do aumento da marginalidade, e que ninguém faz nada com seriedade para mudar a situação. Tudo política, tudo arranjo de política e só. Os tais estudiosos certamente pesquisaram apenas países africanos, aqueles onde as crianças já nascem sem pais e com os dias contados para morrer de fome, mas que venham aqui e pesquisem pra ver só uma coisa. É uma África ajeitada, com outro nome; foi e é uma trincheira de guerra em tempos de paz; é o desenho do fim do mundo. Muita gente pensa que não, mas existe fim de mundo sim, e todo dia tem um fim de mundo em cada lar que amanhece e anoitece na maior miséria do mundo...".
Estava exaltado, revoltado. Acalmado pelos amigos, sentou, ficou meditando por uns instantes mas logo resolveu que tinha de fazer alguns comentários, tecer algumas considerações sobre o subdesenvolvimento e as formas de violência que isto pode gerar no sertão nordestino. Pediu licença para não ser interrompido e iniciou suas explicações.
O sertão, nos seus primeiros passos de povoamento, não foi alicerçado no cimento da penúria e da pobreza, muito pelo contrário. A riqueza de sua esplendorosa vegetação, a força das águas dos rios e seus afluentes e a chama de uma vastidão de terras sem donos, foram nortes e ancoradouros para aventureiros e sonhadores, que se já não ricos materialmente, tinham a riqueza maior que é a vontade de vencer mudando pedras de lugar. Assim, povoou-se rico porque criadores do litoral penetraram no seu interior, através do Rio São Francisco ou "Rio dos Currais", como também é denominado, dentre tantas outras denominações. A partir dessas primeiras penetrações, estabeleceram inúmeras fazendas nas suas margens. Tudo isto lá em meados do século XVII. Um tempão já faz...
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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