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quinta-feira, 27 de maio de 2010

SENTIMENTO DO ESPELHO (Crônica)

SENTIMENTO DO ESPELHO

Rangel Alves da Costa*


A mocinha bonita tinha pendurado no quarto um espelho antigo, desses que de tanto refletir por anos e anos o rosto de sua dona vai, mesmo sem querer, perdendo sua cor, turvando, apresentando pequenas manchas, que depois dificultam enxergar com nitidez as feições, a beleza ou os múltiplos sentimentos que lhe são expostos para adivinhação ou confirmação.
Não é fácil ser espelho sem que a película que reflete não possua conhecimentos da psicologia, não for analista comportamental, se não for amigo e conselheiro, forte o suficiente para suportar os impactos das situações nos rostos que lhe são apresentados cotidianamente, pois os espelhos também têm sentimentos e como tal sentem por dentro aquilo que está refletindo.
Um dia a mocinha dona do espelho resolveu trocá-lo, mandar colocar um vidro espelhado novo naquela moldura antiga e que ela preservava como se fosse um precioso objeto de herança. Mais de três gerações de familiares já haviam se espelhado nos vidros com aquela mesma moldura de madeira, toda cuidadosamente talhada à mão. Não seria agora, principalmente ela que tinha tanto apego ao passado, que abandonaria num canto qualquer aquela preciosa ornamentação.
Um dia antes de levar o espelho até a vidraçaria, quando já era noite e estava prestes a deitar, ficou em frente ao seu cúmplice de sentimentos, já quase sem ter reflexos suficientes, e sem querer abriu a boca e dele se despediu, dizendo que muito obrigado por todos aqueles anos que havia refletido sua face e, mais do que qualquer pessoa, compreendendo seus momentos alegres e tristes, os instantes em que irradiava pura beleza e outros onde a solidão deixava o rosto entristecido e feio.
Bastou isso e o espelho silenciosamente ouviu e ficou ainda mais opaco, como se fosse partir a qualquer instante, morrer ao amanhecer, deixar de espelhar para sempre. A mocinha ajeitou o cabelo, retirou a maquiagem, fez um gesto de beijar o espelho, deitou e dormiu. Mas o espelho não. Abatido, melancólico e cheio de angústias, não conseguiu fechar os olhos a noite inteira, chorando convulsivamente diante da notícia que havia recebido. Se tivesse outro espelho lhe espelhando diria que nunca foi refletida tanta dor e agonia como naquela noite, na meia luz do quarto. A única testemunha daquilo tudo dormia e sonhava com um espelho novo.
Assim que acordou, a mocinha não se mirou no espelho como de costume. Depois de caminhar pelo quarto, de repente se aproximou dele já com alguns jornais e uma bolsa grande bolsa nas mãos. Vai ser agora, pensou o espelho aflito. Mas quando ela se encaminhou para junto dele e estendeu a mão para retirá-lo da parede, ele não suportou o instante e resolveu falar, ao menos se despedir, daquele rosto bonito que viu crescer, de todos aqueles sentimentos que aprendeu compartilhar e, como ela, também já havia se alegrado e sofrido muito.
"Espere só um instante, minha menina. Fiquei em silêncio esses anos todinhos somente lhe apreciando, refletindo junto contigo todos os seus bons e maus momentos. Quantas vezes me alegrei somente em te ver feliz e sorridente, bela com uma flor, coisas que aos meus olhos e ao meu coração enchiam e ainda enchem de felicidade, mesmo que este seja o instante de minha despedida. Compreendo bem os motivos que fazem com que pretenda preservar a moldura e trocar o meu vidro, onde estou, onde vivo, onde passei esses longos anos refletindo seus antepassados e agora você. Sei que estou velho, amarelado, se cor e sem brilho, que já não reflito como realmente gostaria de se ver todos os dias. Compreendo tudo isso minha menina, pois há um tempo de despedida para tudo na vida. Só peço uma coisa, só imploro que se aproxime bem pertinho de mim e veja como você está triste. Não queria te espelhar assim pela última vez, mas você está triste. Basta esse olhar, esse último olhar de nossa despedida e depois pode fazer dos meus restos o que quiser. Adeus, minha menina, e que o novo espelho te deixe ainda mais bela!".
E a mocinha, surpreendida por aquelas palavras, caiu em prantos, ficou triste e feia. E quando quis refazer suas feições no seu velho e querido espelho teve outra surpresa: não havia mais nenhuma luz no espelho, como se o seu resto de luz tivesse sumido. Restava somente o vidro nu, molhado e turvo, que ela limpou carinhosamente e levou para vidraçaria, não para colocar um vidro espelhado novo, mas a sua mais bela fotografia.




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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