CHEIRINHO BOM DE CAFÉ E DE CIDADEZINHA
Rangel Alves da Costa*
Que a vida sertaneja, ao menos para os de mais idade, é muito diferente do que a vida da capital, da cidade grande, parece não haver dúvidas. Nas cidadezinhas interioranas ainda se respira um ar de familiaridade, de amizade e de compartilhamento entre todos que há muito deixou de existir nos centros urbanos desenvolvidos. São pequenas coisas, pequenas nuances cotidianas que fazem toda a diferença.
Olhar matuto, vida matuta, povo matuto. Diferentemente de ser um desprestígio ou discriminação, é uma valorização a um povo que graças a Deus só se preocupa com as realidades desumanas do mundo porque ouvem dizer, porque a televisão mostra, porque não tem jeito mesmo. Melhor seria a felicidade sendo construída junto com o cheiro do café caseiro, batido no pilão na hora, espalhando aroma e sabor pelos quintais e tomando as ruas; tomar banho na biqueira da casa quando chove, colher a fruta fresquinha no quintal, bebericar do leite ainda quentinho do peito da vaca, debulhar feijão de corda verdinho para mais tarde comer com a carne de carneiro que o vizinho matou naquela manhã. Sim, sertão, cidadezinha, qualquer cidadezinha do interior...
Maria passou com um feixe de lenha na cabeça; Joana oferece à vizinha cinco preás fresquinhos dos muitos que o seu filho Tião pegou na armadilha colocada na capoeira na noite anterior; Seu Manoel estendeu em frente de casa para secar todo o feijão que conseguiu colher no roçado; Lurdes faz uma panela de barro no quintal e Joãozinho aproveita e se enlameia todo para esculpir um boizinho; as três beatas passam de casa em casa com a imagem do santo pedindo ajuda para a novena que será realizada no fim de semana. Seu Antero, já velhinho, morreu e meio mundo de gente passou a noite velando o corpo entoando rezas próprias para a ocasião e tomando cachaça. Souberam que a filha de Totonha pariu naquela mesma noite. No interior é assim, mesmo na morte, há vida...
Quando o sol começa a se por, nos pequenos sítios, fazendas e pequenas propriedades, é hora de chiqueirar o gado, retornar pra casa depois do dia de trabalho cansativo, levar o pequeno rebanho para o riachinho ou para a beirada do poço que ainda tem um restinho de água, armar a rede na varanda, mandar varrer o salãozinho porque um amigo sanfoneiro disse que passaria por ali ao anoitecer. Certamente que os vizinhos virão assim que ouvirem o fole tocar e a festança estará garantida até o dia amanhecer. Tem cachaça limpa e fumo de rolo, tem menina bonita sibite e tem muito cabra de olho, tem namoro pelos cantos e outros que vão se esconder pelas moitas. E tem a lua, e tem a lua, e o que dizer do luar sertanejo?...
Nas ruas da cidadezinha, assim que o entardecer sinaliza a diminuição da quentura, o refrescar do calor, e as nuvens meio avermelhadas ficam bonitas lá em cima e o vento começa a soprar mais rapidamente e refrescante, as comadres, amigas, vizinhas e quem for chegando, começam a abrir as portas, colocar cadeiras pelas calçadas e começar um proseado gostoso demais. Tem calçada que vixe Maria, o que não se sabe se inventa, se fala sobre tudo e principalmente da vida dos outros. Noutras estão pessoas olhando a natureza ao redor, as pessoas que passam, as novidades que chegam.
Nessas calçadas sertanejas, quando a hora do dia é mais bonita, o velho Quelé se assenta no banquinho e começa a preparar o cigarro de palha; Jeroma estende sua mesinha para vender arroz doce, mingau e mungunzá, já Filipa, mais na frente, tem pra vender cocada, bala de mel, quebra-queixo, canjica e pamonha. Mas em muitas dessas calçadas se avista também pessoas solitárias, senhoras idosas sentadas nas suas cadeiras de balanço fazendo tricô, remendando uma roupa, com os olhos nas distâncias da saudade, com o coração apertado, com as lembranças remoendo seus pensamentos de muitas lembranças. A solidão também é sertaneja, e doi e arde...
Os meninos correm só de calção por ali; duas garotinhas brincam com suas bonecas de pano; Zezinho achou de trazer sua fazenda bem pra frente da casa e começa a brincar com o seu rebanho de pontas. Drummond pega da pena e escreve: Casas entre bananeiras/ mulheres entre laranjeiras/ pomar amor cantar./ Um homem vai devagar./ Um cachorro vai devagar./ Um burro vai devagar./ Devagar... as janelas olham./ Eta vida besta, meu Deus.
Êta vidinha besta, meu Deus, maravilhosamente besta, meu Deus!
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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