SER SERTÃO: DA ARTE DE CONVERSAR – IV
Rangel Alves da Costa*
Partindo da roça para os centros mais desenvolvidos começa uma mesclagem no falar e é quando o intricado dos grotões mistura-se à tentativa de clareza do linguajar urbano. Ninguém pode mais reclamar que não compreende nada de uma frase inteira. Contudo, vez por outra, o ouvido tem de ficar mais atento, mais alerta, de modo que uma só palavra matuta não destoe nem dificulte o entendimento que se queria ter.
E novamente o velho procurou exemplificar:
- A menina, coitada, tá mirradinha, só tem o bucho e os gravetos.
- Também pudera, gasguita cuma é, nem bem tirou o fedor de mijo e já vive desembainhando macho.
- O pai nem se avexa, vive só matutando em rameira. Pru mode disso é que ficou aluado e deixou a muié.
- Aí é outra, quenguinha da silva, chifrava o marido na capoeira, no pé de moita e em tudim que é buraco. Roçar num roça não, mas estrovenga é com ela mermo.
- Taí cumpade, essa é de engasgar besta. Nunca assuntei que a zinha fosse de chafurdar.
- E o pio é o converse dos ôio de fechadura. Tão derramano que o cumpade num sai de riba da cama de vara da dita. Diz que o sinhô tá incegueiradim que só rapaizim quando começa a andejar pros brega.
- - Que converse de jirico é esse? Nunca tasquei ninhum tantim anssim de pé de ôio praquela desavergonhada, muito pio água em cacimba seca.
- Se apoquente não, cumpade, é só falatório desses bunda seca. A lambisgóia num vale um derréis, inté parece um tribufú.
- Mais a fia, se pegasse mais uma carninha inté que dava pra amoitar, pra matar o veio. Taí um bichim biliscoso qui nem dói.
- Vixe cumpade, ou o sinhô tá de prosa ou abilolou.
Rastreando ao pé da letra, juntando palavras, observando-se sua conotação, sua conexão, a proximidade com o sentido real da frase poderá até ser imediata. É exercício de observação, atenção. Na mente do sertanejo não está incutida a ideia segundo a qual ou decifra-me ou te devorarei, mas sim a noção de que decifra-me e me compreenderá. Ao decifrar, o estranho sentirá todo um simbolismo especial que envolve o linguajar, na sua simplicidade e caráter originário, e que para muitos é a única e mais correta forma de expressão.
Como sempre ocorre em todo meio, em todo grupo social, existem aqueles que, pelo próprio desenvolvimento do ambiente, começam a quebrar convenções, desnortear condutas. Quando isto acontece com o linguajar simplesmente brota uma descaracterização do tradicional, uma ruptura na cultura da palavra. Isto começa com a importação do palavreado sulista, depois desaba para o idiotismo da linguagem, para as gírias insuportáveis.
- Diga aí meu, tô na maior pachorra.
- Que nada meu, bote a grimba pra desgrilar e vamo azucrinar.
- Pega leve meu, como tô derrubado só mesmo um baseado.
- Nem uma bia, pior uma galinha inteira. Também tem o negócio dos tranca.
- Então vamo dá um role, na casa da mina, lá nas esconda.
Vagabundo não fala, não conversa, troca ideia. Vagabundo não diz uma frase com dez palavras, também não precisa. No sertão virou contágio, doença ruim que a cada dia aumenta o surto, irradia-se. E os bons e autênticos sertanejos, em pé de prosa, bem poderiam afirmar:
- É fim de mundo, cumpade.
- É não cumpade, é começo do fim dos homi macho mermo.
Bem que poderia acrescentar muito mais coisas, fatos, exemplos, mas o velho não quis cansar seu interlocutor. Ficaram por ali mesmo, proseando sobre outros assuntos.
continua...
Advigado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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