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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

CAMINHOS DE ÁGUA E MATO (Crônica)

CAMINHOS DE ÁGUA E MATO

                                    Rangel Alves da Costa*


Num tempo ido, lá pelas sombras distantes do passado, quando o sertão era de bicho festeiro e mataria fechada, de terra coberta de pedra e folha, de vastidões solitárias e paz subindo e descendo montanhas, o homem felizmente ainda era um ser quase que totalmente desconhecido por lá.
Um dia, lá pelas bandas de outras regiões e suas revoluções, das revoltas do povo cansado da dominação colonial e do subjugo da metrópole, bem como pelas incursões de outras nações que se achavam no direito de mandar e desmandar sobre a nova terra, semearam-se novas formas de sobrevivência a partir do medo e das incertezas.
Quando o povo se viu forçado a abandonar suas terras mais adentro do litoral e os litorâneos se viram comprimidos pelas baionetas e os absurdos, então uma verdadeira leva, fugindo dos entreveros pelo poder e riquezas, começou a se deslocar para outras localidades na região nordestina, seguindo pelo caminho que então era mais fácil seguir: o rio.
Abandonando o temor das cidadelas, das fazendas pelos arredores e da vida tão próxima da civilização violenta, pessoas reuniam seu rebanho de gado e outros animais de criação, colocavam o que podiam em cima de embarcações e seguiam pelas águas do São Francisco, cortando as margens rochosas, até chegar às beiradas e ali soltar sua cria para sobreviver.
Assim, o próprio rio São Francisco foi o caminho certeiro, manso e esperançoso, de onde o futuro desbravador dos sertões se lançava em aventura, sem imaginar que seria o responsável pela sua colonização. Uma vez desembarcado, o novo sertanejo espalhou sua criação primeiro pelas margens do rio, demarcou outras terras até onde seus olhos não avistavam e passou a viver como se dono fosse de milhares e milhares de léguas inóspitas.
Mas a força e a coragem daquele verdadeiro bandeirante, após um período de conhecimento e demarcação da região ribeirinha, da imposição de seus currais e fazendas, não se contentou mais em continuar apenas ali. Ora, os sertões eram vastos demais, com a natureza virgem certamente guardando muitas surpresas boas, e então foram sendo abertos caminhos para as profundezas das áridas terras, do seio da mata.
E que encantamento se tinha ao lado, adiante, ao redor, por todos os lugares. Mataria fechada de cima a baixo, sons cortando o negrume verdejante ou a formação mais ressequida pelos tempos constantes de secas. E um verdadeiro labirinto de folhas e folhagens, troncos e garranchos, dizendo que ali está a catingueira, o cedro, o umbuzeiro, o velame, o fedegoso, e mais adiante e tomando conta do chão crivado de espinhos e pontas de pedras a palma selvagem, o xiquexique, o mandacaru, a cansanção, a urtiga.
Para o homem entrar nessa mata e abrir passagem para os descampados, para outras vertentes, tinha que fazer as primeiras vítimas na vegetação com o seu facão afiado. Com a sua cartucheira deitada sobre o corpo, levava à mão sua arma de cano longo, sua espingarda, seu mosquetão. Tudo quieto demais por todos os lugares, a não ser as cobras amoitadas por debaixo dos troncos e pedras, até achava que a bicharada não existia.
E bastou dar um tiro numa jibóia para espantar todo mundo, para abrir a porta das tocas, desfolhar as moitas e a selva sertaneja se fazer espanto e desespero para o tamanduá, a onça, o veado, a raposa, o guaxinim, o papagaio, o periquito, a asa branca, o azulão, o coleirinho, a sabiá, a fogo-apagou, a nambu, a codorna, o tatu, o peba, e a mãe de todos os bichos que existia por lá: a ciogaia, que era um ser lindo e encantado que espalhava a constante harmonia entre os bichos e a terra.
Sempre descontente com o que conquistava, o homem foi abrindo mais e mais caminhos, construindo casas de troncos, levantando moradias de taipas. A criação acompanhou o seu dono e os currais passaram a ser levantados ao lado ou nos fundos das casas, pois o restante era tudo aberto para quem quisesse chegar e ficar. Com a chegada dos novos habitantes, os sertões passaram a tomar outro destino que não somente de exuberância exótica e selvagem.
Quando tudo passou a ter dono, cada pedaço de terra e cada e cada nascente de rio e riacho, então os antigos donos decidiram, silenciosamente, que se retirariam um dia para nunca mais voltar ali. E é por isso que o sertão ainda existe, porém devastado e sem os seus habitantes pulando de galho em galho ou correndo por entre moitas e macambiras.
O homem chegou ali pelas revoltas do homem. Chegou, viu, destruiu sem conservar o essencial de tanta riqueza: a fauna e a flora, as forças da terra. E foi pela revolta de bicho e planta que o homem ficou entregue à triste solidão do progresso, ainda que pense ser um grande conquistador.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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