SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 19 de agosto de 2011

TALAGADA E PROSEADO (Crônica)

TALAGADA E PROSEADO

                             Rangel Alves da Costa*


Ao menos no sertão de onde vim, tomar cachaça, beber uma branquinha, bater o copo, é tomar uma talagada de aguardente. Do mesmo modo, pilheriar no pé do balcão, contar ou ouvir causos, matutar sobre isso ou aquilo, é trocar um proseado nas horas sagradas do aperitivo. E que momento mágico na vida sertaneja.
Digo horas sagradas porque cabra matuto mesmo, daquele que sabe beber na sua medida e na medida dos outros e não extrapola pra não encher a tampa, pra não tá chamando Jesus de Genésio, beber suas talagadas de pinga é procedimento rotineiro, feito mais de uma vez por dia, mas sempre em horários determinados. É um verdadeiro ritual de talagada e proseado.
O sertanejo bebedor de cachaça com raiz de pau ou qualquer outra branquinha não bota copo na boca antes de terminar o trabalho para o de comer. Lá pra cima das onze e meia, coisa disso em diante, quando o sangue já tá fervendo de tanto roçar, capinar, puxar carro de boi, levantar parede, fazer um monte de coisas, é que segue em direção à vendinha do amigo e já é atendido sem precisar abrir a boca pra pedir nada.
Muitas vezes já traz na mão um tantinho de umbu, uma fruta do mato, qualquer coisa que tire o amargor inicial da cachaça. Sempre tem alguma coisa por cima do balcão, tiragosto miúdo como um pedaço de nambu assada, um pé de preá, uma piaba ou pilombeta ou até um taquinho de carne frita que pegou da panela sem a mulher perceber.
Cada um traz uma coisa diferente, como diferentes são as cachaças existentes, e então não há do que reclamar. Contudo, nunca passa de duas goladas, duas boas talagadas que é pra abrir o apetite e mais tarde voltar ao batente. Outra rodada somente ao entardecer, descambando para o anoitecer, quando há mais tempo de prosear com os amigos de luta no pé do balcão.
Conheço de perto todo esse procedimento porque sou sertanejo e quando morava por lá tinha o prazer de chegar à vendinha e mandar descer por um tostão o aperitivo com a raiz de pau mais apurada. Angico, quixabeira, bonome, cravinho, hortelã, cedro, aroeira e toda uma mataria sertaneja, bem como misturas mais exóticas e desconfortantes ao olhar, como a cobra inteira ou apenas o pó torrado dela misturado na cachaça.
Com dois contos o cabra fazia uma farra de não acabar mais. Todos aqueles sertanejos, bem mais velhos do que eu, eram grandes amigos e quando eu chegava já era motivo de alegria. Onde tinha apenas dois cabras bebendo e proseando num instante chegavam mais quatro ou cinco. Experimentavam uma, depois pediam outra e, enquanto mordiam o umbu, histórias de não acabar mais iam sendo contadas.
E como aquele povo conhecia história. Não só conhecia como vivia e fazia a história. Geralmente o balcão ficava rodeado de vaqueiros, aboiadores, trabalhadores da roça, caçadores, aposentados e estropiados das lides sertanejas desafiadoras. E não tinha coisa enfeitada não, pois todos chegavam com seu gibão, seu chapeu de couro ou de palha, trazendo nas costas a enxada e o machado, a foice ou o entrelaçamento de cordas, derreando pelos cantos o saco, o alforje, o cantil de couro cru.
Um me contava a história do boi que amansou o dono, outro contava o causo da cobra gigante que matou três bezerros numa noite só, mais um lembrava da pedra que chorava quando mulher da bunda grande sentava por cima, e  já outro dizia que se o tempo continuasse do jeito que estava naquele ano não ia ter safra de jeito nenhum, a terra ia esturricar e boi e cavalo se perder na magrez debaixo do sol.
Um compadre dizia ao outro que tinha um pouco de feijão que daria até o fim do ano, mas se não chovesse não adiantava de nada, pois comer feijão puro com farinha só mesmo pra não morrer de fome. Se chovesse, se caísse trovoada, aí sim, era garantido ao menos o quilo de carne com osso toda semana. Chuva alegra, anima, traz trabalho, faz a gente encontrar meios de sobrevivência. Dizia.
E de vez em quando eu também tomava uma pra não fazer desfeita ao compadre. E todo mundo ali era compadre e amigo, era sertanejo e conterrâneo, era sobrevivente de um tempo que não existe mais.
Ainda hoje tenho vontade de voltar àquele pé de balcão e mandar descer uma quixabeira, uma umburana apurada. Infelizmente poucos daqueles amigos poderei encontrar. Por onde ando tenho conhecimento de que muitos daqueles bons sertanejos hoje vaquejam, aboiam, proseiam nas caatingas e descampados do céu.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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