SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 9 de fevereiro de 2014

OUTRO MUNDO SERTANEJO


Rangel Alves da Costa*


A vastidão do mundo sertanejo guarda diversos outros mundos nas suas entranhas. De sua imensidão, outras dimensões se escondem ou se realçam nos seus quadrantes. Aquilo que se vê não corresponde à realidade acabada, de modo ser impossível conhecer o todo pelo que se tem emoldurado no olhar. Desse modo, muito existe que permanece desconhecido da visão primeira.
Assim teria de ser porque há muitos sertões num só. Neste sentido, o sertão histórico e geográfico, com sua feição característica de heróis e espinhos; o sertão aparente, aquele mesmo avistado e certamente não compreendido pelo forasteiro; o sertão terra, chão ressequido, vivenciado pelo seu habitante, o sempre bravo sertanejo; e ainda outros sertões num mesmo sertão.
Suas características são inconfundíveis. Falar no sertão é pensar nas contínuas e duradouras estiagens, na terra esturricada e no bicho e no homem faminto e sedento, na pobreza se alastrando pelos rincões, no sol imenso e escaldante e na lua poeticamente festejada. E também o sertão de Lampião, do Padre Cícero, do Conselheiro, bem como dos tipos próprios da terra: vaqueiros, ribeirinhos, agricultores, sanfoneiros, uma gente de fervorosa religiosidade.
Mas não se pode esquecer o sertão de riquezas inigualáveis, da terra que mesmo árida se plantando tudo dá; do povo cativante, humilde e trabalhador. Não se tem mundo afora manifestações culturais tão autênticas quanto as nordestinas. O fole ainda ronca; o sertanejo ainda corre em vaquejada; sua arte de bordado, couro, madeira e barro, é festa para o olhar. E também a cantoria matuta, o aboio, a toada, o repente.
Tudo isso ainda existe. Não como antigamente, mas ainda é possível encontrar um sertão ainda não completamente desfigurado pelo progresso arrebatador nem pelos modismos que a tudo descaracteriza. Mas é preciso correr chão para localizar o que ainda resta de mundo sertanejo, de entardecer vivenciado no cheiro do café torrado, nas cadeiras de balanço pelas calçadas, nos velhos amigos proseando debaixo do pé de pau.
Contudo, há um mundo sertanejo, de presença constante dentro de outros mundos empobrecidos ou mais desenvolvidos, geralmente esquecido tanto pelo forasteiro como pelo próprio homem da terra. Esse mundo, sempre entremeado de pobreza, distância e desolação, é lugar e repouso daquilo que resta do autêntico homem da terra, do legítimo sertanejo com sua feição maior: o ser que ao mesmo tempo é grão de terra e bicho do mato.
Não é nas beiradas de estradas e caminhos largos que se chega a esse mundo. É preciso cortar vereda, adentrar no chão pedregoso e espinhento para se avistar a tapera, o casebre, a casa erguida no cipó e barro. Ou mesmo casa de taipa com janelas e porta de madeira. Mas sempre reconhecida pela solidão do lugar, pelas poucas moradias existentes ao redor ou mesmo pela única habitação em meio a mataria ou descampado.
Ali, com sua família, vive o autêntico sertanejo, o habitante desse outro mundo desconhecido por muitos. O homem até que pode ser conhecido aonde chegue, seguindo estrada ou na feirinha semanal, mas é no seu peculiar modo de viver, na sua vivência de quase enclausuramento e na distância que mantém dos afazeres dos centros urbanos, que reside toda a diferença no seu jeito de ser e partilhar de seu meio.
Esse outro mundo sertanejo também possui características inconfundíveis. O homem vive para sua terra, seu pedaço de chão, seu pequeno rebanho ou bicho de quintal. Geralmente não há eletricidade na sua moradia nem água encanada; não há qualquer comércio por perto nem posto de saúde. A sobrevivência tem de se bastar com os frutos da terra, com o adquirido na feirinha semanal, ou com o quase nada que geralmente dispõe.
E é um mundo solitário porque distante, porque afastado de outras moradias, com poucos conhecidos ou viajantes que por ali chegam ou fazem passagem. Os dias de mesmice são suportados sem que o sertanejo sequer se lembre da existência de cidade ou povoação mais adiante. Ali é o seu mundo, e pronto. É onde conversa com a natureza, conhece os mistérios do tempo, se torna amigo inseparável de cada toco de pau e de cada bicho.
Amanhece antes de o galo cantar e toma seu café de dormida no primeiro brilho da lua. Tem sempre um radinho de pilha como companhia e uma prece na boca toda vez que olha para o horizonte desesperançoso de chuva. Ajeita no beiço seu cigarro de palha, entorna dois dedos de casca de pau e chiqueira a vida como o rebanho maior que pode dispor. De vez em quando lança mão do berrante e entoa uma saudade imensa.
Mas não a saudade de outro lugar ou de alguém. E sim a saudade do próprio sertão. Eis que já muito diferente daquele sertão de seus pais, seus avôs e de todos aqueles que antes deles vieram.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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