Rangel Alves da Costa*
Muito já se escreveu sobre a vida e seu
significado, a razão da existência e o mínimo que se deve ter para dignificar
uma sobrevivência. Mas também muito já se reconheceu acerca dos desnorteamentos
impostos ao simples ato de viver e sobreviver com feição humana.
Para a maioria, longo e difícil é o percurso
entre o ato de nascer e morrer, ainda que a vida seja curta. Difícil caminhar
por estradas conhecidas e alcançar os objetivos desejados. A cada passo a
transformação, a curva no caminho, um novo desafio na existência.
Ninguém trilha sua estrada através de linha
reta, muito menos aqueles que já nasceram em leito humilde. O caminho
imaginariamente florido é recoberto de espinhos e ladeado por labirintos. Em
tudo um pêndulo, uma inclinação ora para ter mais e ora para ter menos. E
muitas vezes nada. Ou quase nada.
E é a vida caracterizada pelo ter nada ou
quase nada que confronta com a existência, com a própria vida enquanto possibilidade
de realização. E as vidas que chegam ao difícil reconhecimento da contínua
dificuldade ou impossibilidade de sair dessa situação não podem ser
reconhecidas senão como vidas avessas.
Avessa é a vida vivida na pobreza, na
miséria, no abandono, na degradação e na humilhação. Avessa é a vida ainda
escravizada pela sociedade, submissa pela própria necessidade, subjugada pela
discriminação e o preconceito. Tão avesso à existência do homem é a negação de
seus valores.
Avessa é a vida suportada na esmola, na mão
mal-intencionada e aproveitadora do outro, na aceitação da indignidade sob pena
de se recurvar ao pior. Avessa é a vida sem teto, sem saúde, sem ter como
ganhar o pão pelo próprio suor. E não há vida mais avessa que sendo pessoa ser
avistada como se não fosse gente.
E vidas avessas porque contradizendo o
próprio sentido de existência do ser humano. Avessas porque pessoas
menosprezadas, tidas como inferiores. Diferenças existem e sempre irão existir,
mas não se pode admitir que a própria sociedade semeie os grãos da divisão
social e depois queira justificar a desvalia de tantos através do destino.
E ainda vidas avessas porque simplesmente
colocadas na marginalidade, seja pela negação da fruição dos bens sociais
colocados à disposição da sociedade, seja pela imposição do estado de carência,
pobreza e miserabilidade. A falta de políticas eficazes para combater tais
problemas é também uma forma de justificação dos absurdos sociais existentes.
Não é da normalidade da vida, e por isso
mesmo tendo de ser considerado como algo avesso, contrário à dignidade humana e
oposto à sua valorização, toda forma de limitar suas forças, de impedir sua
libertação através da educação, do conhecimento, da informação. E mais avesso
ainda é o discurso da resolução quando se tem a continuidade.
Já disse o poeta que gente nasceu para ser
feliz. E nisto a mais pura verdade. O homem não vem ao mundo apenas com o dom
da existência, mas também da realização em busca da felicidade. Mas quando a
sociedade lhe nega passagem em detrimento de outros, então se observa a quebra
do contrato ético de reconhecimento e valorização de todos, indistintamente.
E o que a sociedade se impõe como
normalidade, pois aceita com naturalidade, muitas vezes não passa de avessos da
ética e da moral social. Simplesmente aceitar que gabinetes políticos paguem
salários a quem nada faz, enquanto outros vagueiam desesperadamente em busca de
qualquer ofício, é um desses males que geram o avesso da desigualdade.
Enquanto o tratamento a problemas de saúde é
normalidade nos ricos, a doença é normalidade nos pobres; uns podem pagar
planos de saúde, outros sequer possuem atendimento digno nos hospitais públicos;
tantos com educação de qualidade em escolas particulares, e muito mais
entregues aos arremedos educacionais ou simplesmente sem escola nem professor.
Algo está pelo avesso.
Quando a justiça se desiguala perante os
desiguais é porque algo está no avesso; quando o pobre, o negro ou favelado é
sempre confundido e tratado como marginal, principalmente pela polícia, é porque
algo está pelo avesso; quando o ser humano olha para o seu semelhante com
enojamento ou desdém é porque algo está ao avesso.
Algo está no avesso quando os discursos
governistas recobrem de farturas e opulências os que continuam na extrema
miséria; quando as drogas destroem jovens e famílias e não há um enfrentamento
responsável e permanente pelos poderes públicos; quando a violência faz
aumentar o numero de vítimas e os órgãos de segurança colocam a culpa nos erros
das estatísticas.
Quanto e como, e muito e mais, estão pelo
avesso. Aquilo ou o que está ao avesso, contudo, não requer o verso, o outro
lado, não deseja ser o seu contrário. Não. O avesso não deseja ser revirado
para se tornar igual à outra face. Dessa face nefasta quer distância. Quer apenas
que não seja avesso. Ou seja, quer respeito e tratamento digno e igualitário.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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