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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 23 de fevereiro de 2014

O CHÃO DO MEU SERTÃO E O SAPATO DA RAINHA


Rangel Alves da Costa*


Sei não, mas se aquela rainha louca fizesse com a terra do meu sertão o mesmo que fez com aquele punhado de areia litorânea não conseguiria nem desembarcar em Portugal. Desastrada, de uma arrogância sem igual a atitude da mulher de D. João VI, Carlota Joaquina.
Atribui-se a ela a seguinte frase: “Não levo um grão de areia na sola de meus sapatos deste quinto dos infernos”. Há também indícios que tal comentário teria sido feito pela rainha ao desembarcar em Portugal. Mas de todo modo, a terra a qual ela se referia era a brasileira.
Besta ela se batesse com seu sapato na madeira do navio para maldizer a terra sofrida, porém abençoada e onde pisa o bravo sertanejo. Idiotice dela se quisesse afastar de sua sola o grão da luta, da persistência e da história. 
Assevera-se que a rainha renegou de vez o chão que tanto e carinhosamente a acolheu. Mas com o chão do meu sertão seria diferente. Terra árida, quente, muitas vezes massapê, outras vezes apenas grãos esfarelados esvoaçando pelas estradas, mas que merece ser respeitada e pisada com a decência dos justos.
Nem todos os pares de sapatos da rainha - e dizem que eram dezenas -, com seus luxos e adornos, valeriam mais que apenas um roló do homem da terra, que uma “aprecata” de couro cru, qualquer chinelo num misto de trancamento de couro e borracha crua. E besta ela se tentasse derrubar os carrapichos, os pequenos espinhos, o pó endurecido fincado nos contornos.
O sapato da rainha talvez só tivesse pisado em terra quando ela foi embarcar pra Portugal. Acostumado aos tapetes dos suntuosos salões, à maciez dos jardins soberanos, às caminhadas leves pelos arredores palacianos, certamente se espantaria com o que pudesse encontrar nas veredas, trilhas e matarias do meu sertão.
Juntando Carlota Joaquina, D. João, D. Pedro, toda família real, séquito e nobres, ainda assim não seria um reinado de suplantar o império sertanejo e sua fidalguia encourada, seus cavaleiros de sol e lua, sua nobreza de força e humildade. Nenhum brasão se faria mais imponente que a bandeira desfraldada nos braços do mandacaru.
Toda a nação portuguesa - e também a espanhola da qual a tresloucada rainha tinha origem - famosas pela usurpação das terras além-mar, jamais conseguiriam alcançar a pujança nordestina e o destemor de seus desbravadores sertões adentro. E fundar a nação que jamais se curvou diante de outra bandeira: a nação sertaneja!
Talvez a rainha mais tarde enlouquecida jamais tivesse ouvido falar do sertão nordestino. Mas se falou mal e menosprezou o solo limpo e molhado do litoral, a terra do lugar que dava sustentação à sua coroa, certamente que nem suportaria avistar o chão encrespado e escaldante do sertão.
Mas ainda assim haveria de respeitá-lo. E se muitas vidas a rainha tivesse e mais tarde soubesse quais os pés que por ali passaram, seguiram suas veredas e trilhas, certamente que haveria de se curvar em reverência.
O chão sertanejo, a terra árida e os carrascais espinhentos, abriram passagem para homens valentes, justiceiros sem igual, beatos e fanáticos, tropas encouradas e todos aqueles cujo destino era fixar moradia naquelas distâncias ensolaradas.
Terra sertaneja e chão de Lampião e todos os cangaceiros nas suas lutas inglórias. Veredas abertas por Antônio Conselheiro e seus seguidores, erguendo igrejinhas e rumando em direção ao templo maior de Canudos. Passagem de comboeiros, vaqueiros, bandeirantes sertanejos, trabalhadores de toda sina.
Um chão assim, com tais caminhantes, há de ser respeitado, dona rainha. Verdade é que vossa estropizia maldisse a terra litorânea da nação brasileira, mas se seus impróprios fossem dirigidos à terra da nação sertaneja, sei não.
Nas profundezas da mesma terra a sua insanidade seria remediada.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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