Rangel Alves da Costa*
Sei não, mas se aquela rainha louca fizesse
com a terra do meu sertão o mesmo que fez com aquele punhado de areia litorânea
não conseguiria nem desembarcar em Portugal. Desastrada, de uma arrogância sem
igual a atitude da mulher de D. João VI, Carlota Joaquina.
Atribui-se a ela a seguinte frase: “Não levo
um grão de areia na sola de meus sapatos deste quinto dos infernos”. Há também
indícios que tal comentário teria sido feito pela rainha ao desembarcar em
Portugal. Mas de todo modo, a terra a qual ela se referia era a brasileira.
Besta ela se batesse com seu sapato na
madeira do navio para maldizer a terra sofrida, porém abençoada e onde pisa o
bravo sertanejo. Idiotice dela se quisesse afastar de sua sola o grão da luta,
da persistência e da história.
Assevera-se que a rainha renegou de vez o
chão que tanto e carinhosamente a acolheu. Mas com o chão do meu sertão seria
diferente. Terra árida, quente, muitas vezes massapê, outras vezes apenas grãos
esfarelados esvoaçando pelas estradas, mas que merece ser respeitada e pisada
com a decência dos justos.
Nem todos os pares de sapatos da rainha - e
dizem que eram dezenas -, com seus luxos e adornos, valeriam mais que apenas um
roló do homem da terra, que uma “aprecata” de couro cru, qualquer chinelo num
misto de trancamento de couro e borracha crua. E besta ela se tentasse derrubar
os carrapichos, os pequenos espinhos, o pó endurecido fincado nos contornos.
O sapato da rainha talvez só tivesse pisado
em terra quando ela foi embarcar pra Portugal. Acostumado aos tapetes dos
suntuosos salões, à maciez dos jardins soberanos, às caminhadas leves pelos
arredores palacianos, certamente se espantaria com o que pudesse encontrar nas
veredas, trilhas e matarias do meu sertão.
Juntando Carlota Joaquina, D. João, D. Pedro,
toda família real, séquito e nobres, ainda assim não seria um reinado de
suplantar o império sertanejo e sua fidalguia encourada, seus cavaleiros de sol
e lua, sua nobreza de força e humildade. Nenhum brasão se faria mais imponente
que a bandeira desfraldada nos braços do mandacaru.
Toda a nação portuguesa - e também a
espanhola da qual a tresloucada rainha tinha origem - famosas pela usurpação
das terras além-mar, jamais conseguiriam alcançar a pujança nordestina e o
destemor de seus desbravadores sertões adentro. E fundar a nação que jamais se
curvou diante de outra bandeira: a nação sertaneja!
Talvez a rainha mais tarde enlouquecida
jamais tivesse ouvido falar do sertão nordestino. Mas se falou mal e
menosprezou o solo limpo e molhado do litoral, a terra do lugar que dava
sustentação à sua coroa, certamente que nem suportaria avistar o chão
encrespado e escaldante do sertão.
Mas ainda assim haveria de respeitá-lo. E se
muitas vidas a rainha tivesse e mais tarde soubesse quais os pés que por ali
passaram, seguiram suas veredas e trilhas, certamente que haveria de se curvar
em reverência.
O chão sertanejo, a terra árida e os
carrascais espinhentos, abriram passagem para homens valentes, justiceiros sem
igual, beatos e fanáticos, tropas encouradas e todos aqueles cujo destino era
fixar moradia naquelas distâncias ensolaradas.
Terra sertaneja e chão de Lampião e todos os
cangaceiros nas suas lutas inglórias. Veredas abertas por Antônio Conselheiro e
seus seguidores, erguendo igrejinhas e rumando em direção ao templo maior de
Canudos. Passagem de comboeiros, vaqueiros, bandeirantes sertanejos,
trabalhadores de toda sina.
Um chão assim, com tais caminhantes, há de
ser respeitado, dona rainha. Verdade é que vossa estropizia maldisse a terra
litorânea da nação brasileira, mas se seus impróprios fossem dirigidos à terra
da nação sertaneja, sei não.
Nas profundezas da mesma terra a sua
insanidade seria remediada.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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