Rangel Alves da Costa*
O passado deixa marcas nas lembranças, nas
recordações, nos retratos antigos. Não somente naquelas fotografias em preto e
branco, hoje amareladas ou esquecidas nas paredes poeirentas dos tempos, mas principalmente
naquelas feições que ainda avistamos pelas ruas como se por ali ainda
estivessem.
Basta andar pela cidade e de vez em quando o
olhar saudoso começa a mirar um ou outro lugar de forma diferente. O olhar
avista e reconhece praças, seus arvoredos e bancos ainda que não mais existam.
Uma esquina de uma rua, a janela de uma casa, um casebre, uma residência
ajardinada com pomar e cachorro. Tudo é rememorado com pulsante vivacidade.
Do mesmo modo ocorre com pessoas. Não é
difícil passar em determinar local e recordar a feição da velhinha
costumeiramente sentada na sua cadeira de balanço, do doido que sempre fingia
querer arremessar uma pedra, da menina triste
e sua feição ainda mais triste no entardecer da janela. Mesmo não sendo mais
encontradas pessoalmente, tais pessoas acabam sendo reencontradas, avistadas,
recordadas.
Assim ocorre porque temos uma mente que não
esquece de vez as situações, coisas e pessoas vivenciadas no nosso percurso de
existência. Contudo, sabiamente a memória depura aquilo que mereça ser guardado
e recolhido como recordação. Daí que mesmo diante de um prédio ainda
conseguimos recordar que naquele local havia um campinho onde as crianças
faziam brotar as forças de suas idades.
Mas muito diferente das recordações forjadas
que nos permitimos rebuscar. Uma coisa é a recordação fruída de repente,
nascida do nada, apenas interligando momentos ou situações, e outra é a pessoa
trazer à mente aquilo que deseja. Recordar o primeiro amor, por exemplo, é
muito diferente de essa recordação surgir quando uma flor é avistada, um poema
é lido, uma canção é ouvida. A feição vem se a lembrança é desejada, mas não
com a singeleza do acaso sentimental.
Meu pai e minha mãe já não estão comigo na
vida terrena. Mas não preciso olhar fotografias para relembrar os sorrisos, os
contornos de suas feições, as atitudes tão próprias de cada um. Minha mãe está
na própria ausência, naquilo que ela gostava e assim a reencontro, por exemplo,
numa toalha de mesa lindamente bordada. E o meu pai no sertão, em tudo que seja
sertão e sua imensidão. Basta pensar em sertão e ali a feição de meu pai.
Vejo crianças correndo pelas ruas ao
anoitecer sob a lua de pedra e me transponho, descalço e incansável, para os
descampados do meu lugar nos idos da infância. O ofuscado brilho da lua sob
telhados é recompensado pela visão da lua imensa e majestosa do meu rincão. A
lua daqui nem se compara com a de lá, mas serve como ponte de recordação para o
que tanto vivenciei e que ainda existe naqueles noturnos sertanejos.
Mas outras coisas surgem como forçadamente.
As mudanças repentinas, o progresso voraz, as transformações desconcertantes,
tudo isso me faz voltar ao passado. Quase como fuga dessa realidade
angustiante, a verdade é que me lanço ao passado como forma de reencontrar
alguma pureza da vida, uma verdadeira significação para a existência. E é
quando me vejo trilhando aqueles dias e encontrando feições que se
imortalizaram na minha memória.
Nas ruas antigas de minha Nossa Senhora de
Poço Redondo reencontro Seu João Fotógrafo e seu tripé de retratos em preto e
branco, e estes tão requisitados em épocas de festa de agosto. Revejo Manezinho
Tem-Tem, o engraxate de porta em porta e seu poder de transformação do
encardido em espelhado. E também a vendedora de araçá, de piau, de araticum, de
elixir contra todos os males.
Basta que eu veja um copo de arroz doce e
recordo de Baíta; basta que eu aviste um artesanato de couro cru e logo
relembro de Brasilino. E assim com a cocada de Dona Quininha, o doce de frade
de Dona Cecília, o chocalho de Galego, a roupa bem feita de Zé de Bela. Ver
comida de feira é ainda sentir o aroma apetitoso saído do fogão de Dona Jarde.
E tudo retrato que ainda guardo comigo. E
tudo saudade que jamais deixarei de sentir.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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