Rangel Alves da
Costa*
O regabofe
cotidiano do cangaceiro, usual no ato da sobrevivência sertão adentro,
consistia apenas naquele alimento necessário a suportar as exigências da lide,
de modo a dar sustentação física. Como dito, era a comida comum, geralmente
preparada com antecedência e colocada no embornal e desfrutada durante a
caminhada ou mesmo debaixo de um sombreado.
Comida do
vaqueiro no mato, do caçador, do nordestino nas lides debaixo do sol,
consistia, dentre outras coisas, na carne seca, no bode assado, na caça encontrada
pela caatinga, na farofa ou mesmo farinha seca. Tudo descendo de goela abaixo
com a preciosa água do cantil ou no apreciado gole de pinga. E da boa. Mas tudo
que se queria era ter um tempo maior para acender fogo e preparar uma comida
mais apurada. Coisa rara era encontrar tal oportunidade.
O regabofe
de coito, ou aquele preparado com mais apuro, fazendo com que os cheiros se
espalhassem pelos arredores sertanejos, somente era possível quando o bando,
sentindo-se em segurança, se refugiava em local adequado. Como não levava o
suprimento necessário para a comida diferenciada, recorria-se ao velho amigo
coiteiro. Este era quem providenciava tudo aquilo que o bando necessitasse na
sua panela ou caldeirão. E chegavam a caça, a carne fresca de bode e de gado, a
galinha e o capão, a carne e a toucinhada de porco gordo, o feijão, a farinha,
o arroz, o açúcar, o café. Uma fartura.
O regabofe
de estrada, ou aquele encontrado pelo caminho, nem sempre era tão farto quanto
o providenciado pelo coiteiro, mas certamente era muito melhor e mais apreciado
que a comida levada nos couros do bando. Os olhos do cangaceiro brilhavam
quando após a mataria ou nos arredores das estradas, avistavam uma moradia
sertaneja. E brilhavam mais ainda quando viam criações pastando ao redor.
Galinha de capoeira, cabrito, bode, qualquer coisa que por ali existisse seria
de grande valia para matar a fome.
Então
batia à porta da casa e ordenava que sem demora fosse preparado alimento para
todo o bando. No instante seguinte e o temeroso e sempre acolhedor sertanejo
começava a providenciar uma fartura de comida. Muitas vezes era família pobre,
sem os alimentos necessários nem para a própria prole, vez que o sertanejo
geralmente passa fome mas não sangra uma cria sua para colocar na panela.
Contudo,
diante da presença do famoso cangaceiro e seu bando, se enchia de contentamento
em poder servi-los com o melhor que tivesse. E não demorava muito para a
cangaceirada se fartar com a avidez dos famintos. Muitos cochilavam enquanto a
comida fervia na panela de barro, no velho caldeirão ou mesma em bacia de
alumínio. Outros, com eterna vigilância, ficavam por ali proseando, fumaçando
um cigarro, limpando as armas, impacientes para abocanhar o que temperadamente
surgisse. Ou apenas com o tempero da terra, com folhagens ou ervas de quintal.
Mas é a fome quem tempera a comida, verdade seja dita.
O folclore
cangaceiro conta que foi numa residência com tais características que ocorreu
um curioso episódio. Conta-se que Lampião mandou preparar o devido regabofe
para o seu grupo e um dos cangaceiros cometeu a imprudência de dizer que a
carne estava sem sal, insossa. Então o Capitão se enfureceu de tal forma que,
após reprimir com palavras duras a observação impensada de seu liderado e
afirmar que deviam agradecer a Deus e àquela família por comida tão saborosa,
pediu todo o sal existente na casa e ordenou que o cabra engolisse tudo. E sem
deixar um só tiquinho. E também um dia inteiro sem beber uma só gota d’água.
Castigo exemplar para os mal agradecidos.
Por
último, o regabofe saboreado nababescamente na residência de coronel ou de
outra ilustre figura sertaneja. Ora, é sabido por todos que a influência de
Lampião era exercida perante todas as hierarquias sertanejas, desde o homem
mais simples e empobrecido ao coronel e demais autoridades. De alguns apenas a
consideração pelo temor, pelo medo que possuíam; mas verdadeira reverência de
outros, num lastro de amizade que permitia com que o bando tivesse guarida e
acolhida nas varandas e mesas mais portentosas. Bastava a sua presença e toda e
qualquer cozinha parecia fervilhar, com alvoroço de panelas e facas pinicando
alimentos.
Dificilmente
o Capitão antecipava o conhecimento sobre sua chegada a qualquer lugar. Era
perigoso demais avisar com antecedência, vez que a desconfiança era instrumento
essencial na estratégia de sobrevivência. Contudo, nada impedia - e assim
aconteceu - que mandasse bilhete a uma determinada influência interiorana
dizendo que tal dia se faria presente com a sua caravana de luta. Missiva
sempre enviada por alguém de sua extremada confiança.
Ao chegar
era recebido com as mordomias dos grandes, com direito a boa bebida e mesa
farta. Não só muita comida como diversidade de pratos. O nordestino,
principalmente se poderoso economicamente, é um desregrado nos alimentos que
manda preparar e servir a convidado ilustre. Os mesmos pratos nordestinos,
porém mais temperados, requintados e diversificados. Numa mesa assim certamente
não faltava a buchada, o sarapatel, a galinha ao molho pardo, o porco assado, a
carne de bode e de gado, e as aves apetitosas. E também as saladas, os molhos,
as massas, os pratos ao forno de lenha.
Mas não
precisava ser pessoa rica, de muitas posses e coronelato sobre o mundo
sertanejo, para servir bem ao amigo Lampião. Meu avô materno Teotônio Alves
China, ou China do Poço como era mais conhecido, se enquadrava nessa categoria
dos que receberam o Capitão com mesa farta, mas sem ser latifundiário ou pessoa
de muitas posses. Pequeno comerciante, dono de bodega, lhe sobrava, porém, a
grande influência que possuía na povoação sergipana de Poço Redondo. Amigo do
líder cangaceiro, era na sua residência que este buscava acolhida e mesa abastecida
quando de visita ao lugarejo.
Não só
Lampião e seu bando eram recebidos por Seu China, pois as autoridades regionais
ali também faziam estadia. E numa ocasião, num mês de agosto em que se
celebrava a festa da padroeira Nossa Senhora da Conceição, eis que o bando
maior desponta na estrada e segue em direção à casa do amigo. O Capitão não
sabia, contudo, que num dos quartos da residência repousava um feroz combatente
de suas práticas: o Padre Arthur Passos.
Os donos
da casa, Seu China e Dona Marieta, nervosos demais diante da situação
inusitada, tendo ali a presença da arma e da cruz, já nem sabiam o que fazer
quando foram perguntados por Lampião o que se passava para estarem assim tão
aflitos. Não vendo saída, o amigo segredou-lhe sobre a presença do velho padre
tirando uma soneca antes do almoço. Segredou e ficou esperando o pior
acontecer.
Mas não,
pelo contrário. Aconteceu muito diferente do tão temido. O Capitão sorriu com a
informação recebida e disse apenas que por gentileza avisasse ao da igreja que
também estava ali e que desejava muito ter o prazer de dividir a mesa com ele.
Então surge outro problema para China resolver, eis que temia ser excomungado
no mesmo instante que repassasse o recado ao Padre Arthur, reconhecido pela
intolerância com as ações cangaceiras e inimigo declarado de Lampião. Alguns,
entretanto - como verdade ou mentira -, juram na cruz que os dois mantinham
grande amizade.
Amigos nos
escondidos sertanejos ou não, verdade é que as pazes foram devidamente seladas
na mesa servida por Dona Marieta. Com a ajuda de comadres e vizinhas, a esposa
de Seu China colocou tantos pratos apetitosos à disposição que o velho padre,
sempre de boca cheia e deixando cair caldo gordo pelos beiços, não conseguia
dizer uma palavra inteligível sequer.
E dizem
que Lampião ficou três dias sonhando com a comida e repetindo em devaneio: Me
passe a buchada, me passe esse capão gordo, me passe esse lombo de porco...
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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