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sábado, 27 de julho de 2013

OS ESQUECIDOS (MEMÓRIA E VIDA DEPOIS DO CANGAÇO) - V



Rangel Alves da Costa*


Logicamente que nem todos foram degredados da memória quando já falecidos ou ainda em vida. Dependendo da propensão histórica e cultural de cada povo, muitos daqueles personagens da saga lampiônica ainda continuam relembrados, e até festejados, perante o que historicamente representaram. Mas não posso falar desse contexto geral, pois não conheço a representatividade que cada um toma na vida de seus conterrâneos.
Por isso mesmo me volto apenas para o microcosmo poço-redondense, na abordagem feita acerca do tratamento dispensado àqueles sertanejos oriundos do bando ou dos arredores de Lampião, e que eram filhos de Poço Redondo, município fincado nas bandas sergipanas do sertão do São Francisco. A mesma povoação sertaneja onde a 28 de julho de 38, na Gruta do Angico, Lampião flamejou pela última vez. Segundo a doutrina da morte, contrariando àquela da eternidade.
Como citado, enquanto povoação - para não se cometer o erro de regionalizar o arruado sertanejo -, Poço Redondo cedeu mais de duas dezenas de filhos seus ao bando do Capitão, bem como coiteiros e outros habitantes que tiveram uma relação de bastante aproximação com o mundo cangaceiro de então. Pelo grande número de meninos e meninas, rapazotes e mocinhas que enveredaram pelas veredas hostis, o mínimo que se esperava é que estes fossem mais reconhecidos pelos seus feitos.
Não significa que todos tenham de festejar a memória de um ex-cangaceiro, reverenciá-lo em pedestal ou mitificá-lo a ponto de lhe imputar poderes inexistentes, mas também não se deve, de forma gratuita, alijá-lo da história municipal. Queira ou não, aceite ou não, o retrato de cada um já está devidamente exposto na parede da história. Ademais, e sem medo de errar, afirmo que Poço Redondo só é reconhecido mundialmente pelo que o cangaço significou na sua vida.
Mas tudo insiste em acontecer diferente naquele lugar. Mesmo o evento maior do cangaço tendo acontecido nas terras da povoação, nas barrancas do Velho Chico, coisa de apenas alguns quilômetros da sede até lá, pouca importância se dá à Gruta de Angico, à história cangaceira, aos seus filhos que no passado estiveram nos palcos das batalhas sangrentas sertões adentro. Quer dizer, aprenderam a história dos outros, dos acontecidos muito distantes, mas não procuraram valorizar a própria história, aquela vivenciada nos seus quadrantes.
Se não fosse a persistência de Alcino, por ele mesmo intitulado “O Caipira de Poço Redondo”, que insistente e fervorosamente mostrou para o mundo o percurso da saga cangaceira na região e desencavou do esquecimento a própria história do município, certamente que até hoje quase nada se conhecia sobre Zé de Julião, o Cajazeira no bando de Lampião, nem sobre Adília, Sila, Enedina, o coiteiro Mané Félix e tantos outros. Isto no contexto de Poço Redondo, pois outros autores já haviam cuidado de tais personagens em seus livros. Parece contraditório, mas assim mesmo aconteceu.
Ora, é de se imaginar como pode acontecer que pessoas como Adília e Mané Félix, até alguns anos atrás vivendo na cidade ou nos arredores, tivessem suas presenças praticamente ignoradas. Quase ninguém reconhecia os seus feitos, mostrava ódio ou a devida valorização, se importava com nada que a eles dissesse respeito. Adília, a mulher de Canário, talvez fosse vista apenas como aquela senhora alta, magra, morena trigueira, de cabelo desgastado e escorrido, que morava ao lado da cidade, lá no Alto de João Paulo.
Esta morena trigueira, de rosto fino e olhar perdido noutros tempos, era de uma simplicidade impressionante. Como de vez em quando a encontrava em minha casa, proseando cozinha adentro com minha mãe, comecei a ter grande afeição por aquela senhora. Meninote, ela brincava comigo, me colocava no colo, fazia cafunés enquanto contava histórias. Não as cangaceiras, logicamente, mas do papa-figo, do bicho-papão e outros bichos amedrontadores da infância.
E lá ia eu atravessando o riachinho na sua companhia, em direção à sua moradia no Alto, no outro lado do Riacho Jacaré. Estrada de chão, ela na frente e eu lançando o olhar pelos descampados ao redor, avistando um ou outro passarinho. Ainda existiam passarinhos naqueles caminhos. Lembro como se fosse hoje, e doce e cativante memória, chegando diante da casa velha, de barro batido, sem nenhum conforto digno para uma grande sertaneja, e contando com muitos filhos, todos já adultos. Mas vivia praticamente sozinha.
Ali passava tardes sob os seus cuidados, de vez em quando brincando com uma marca que ela possuía numa das pernas. Só depois fiquei sabendo da bala inimiga adentrando o osso e deixando a dolorosa recordação cangaceira. Um tiro, um balaço, um açoite flamejante saído de dentro do mato e acertando a perna em cheio. Por pouco não ficou aleijada. Mas a marca ainda estava lá, uma lembrança na pele e no osso dos tempos idos.
Enquanto gente desconhecida e pesquisadores vindos de muito distante chegavam para conhecê-la e entrevistá-la, os seus conterrâneos quase nenhuma importância lhe dedicavam. Mesmos os mais velhos, aqueles que conheciam toda a sua história, não procuravam nada dizer aos mais jovens sobre a vivência daquela então empobrecida mulher. E mais uma vez foi preciso que Alcino mostrasse ao povo a sua importância. Não somente isso, mas principalmente possibilitando uma sobrevivência com dignidade.
Com Sila aconteceu diferente. Como a ex-cangaceira e companheira do também cangaceiro Zé Sereno se bandeou para São Paulo após o fim das vinditas sangrentas, logo se livrou de cair no rápido esquecimento perante os seus. De família numerosa em Poço Redondo, também irmã dos ex-cangaceiros  Novo Tempo, Mergulhão e Marinheiro, ainda assim não estaria livre de ser relegada no seu passado. Foi arriscar a vida e o reconhecimento em terras distantes.
Na capital paulista se fez conhecida, fez fama de bordadeira e costureira, teceu grandes amizades com pesquisadores e escritores. De suas entrevistas nasceram livros, dentre os quais “Sila, uma cangaceira de Lampião”,  em parceria com Israel Orrico; “Gente de Lampião: Sila e Zé Sereno”, de Antonio Amaury Correa de Araújo; bem como  “Memórias de guerra e paz” e “Angico, eu sobrevivi”, estes assinados como Ilda Ribeiro de Souza.
Suas visitas à terra natal eram objeto de falatórios e curiosidades. Muito menos por se tratar de uma ex-cangaceira e muito mais pelo seu jeito de se apresentar aos conterrâneos. Sempre bem maquiada, cabelo pintado, com roupas bonitas e vistosas, preservando, em outros moldes, a vaidade que foi tão peculiar aos cangaceiros. Já Adília, que permaneceu nos quadrantes poço-redondenses lutando pela sobrevivência, se sentia bem com o que possuía pra vestir e dava graças a Deus por continuar vencendo as dificuldades.
Quem avistasse Sila e nada conhecesse sobre seu passado, nem de longe imaginaria ser uma ex-cangaceira, um dia vestida com roupa adornada de espinhos e perfumada pelo suor das correrias caatinga adentro. Desse modo, os comentários eram mais por curiosidade do que mesmo pelo que ela historicamente representava.
Ademais, corria a boca miúda que ela tinha o hábito de falar mais do que sabia, de inventar coisas que não havia vivenciado ou presenciado, num afã descomunal de ganhar muito mais representatividade no bando de Lampião. Foi também acusada de fazer afirmações contraditórias, dando constantes reviravoltas naquela realidade. Contudo, no contrapeso da história, ainda prefiro acreditar no que ela dizia, ainda que seja próprio de cada personagem colocar sobre si um pouco mais de dramaticidade.
Nas suas visitas a Poço Redondo, certamente que Sila procurava se avistar com Adília, ex-companheira nas lides cangaceiras. Outro dia assisti a um vídeo onde as duas proseavam, contavam causos daqueles tempos difíceis. Uma diferença impressionante entre as duas. Uma sertaneja e outra com feição sulista, ainda que de suas bocas saísse a mesma saga e os seus olhos ainda estivessem espelhando o sertão da catingueira, da refrega, da incerteza, da correria.
E nas duas os tempos difíceis de outrora. E tudo por amor não cangaço, que nem sabiam o que verdadeiramente significava, mas ao cangaceiro. Por amor a Zé Sereno (ainda que afirmasse ter sido raptada), por amor a Canário. Sila faleceu na capital paulista em 15 de fevereiro de 2005, aos 86 anos; enquanto Adília faleceu em Poço Redondo, no mês de março de 2002, aos 82 anos.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com   

Um comentário:

Anônimo disse...

Professor Rangel: Lendo a quinta parte do comentário que você vem apresentando, cujo título OS ESQUECIDOS, e, ainda que eu não acredite em predestinação, venho compreendendo as surpresas que a vida reserva para os mortais, logo que, a elaboração de seus artigos nos forçam a fazer uma análise profunda da caminhada de cada jovem que adentrou-se numa vida de perigosas aventuras. Pausei por alguns meses a elaboração do trabalho que estou escrevendo, exatamente para me aprofundar no conhecimento dos fatos ocorridos no cangaço. São muitos os subsídios que tenho recebido, tanto de sua parte, como de Mendes e de outros experientes pesquisadores. Só que as suas matérias são escritas constantemente, dando condição para uma atuante sequência de estudo. Muito e muito grato e parabéns por está dando plena continuidade numa história que tanto o saudoso Alcino Costa - seu estimado pai, fazia com amor. Antonio José de Oliveira - Bela Vista - Serrinha-Ba.