Rangel Alves da
Costa*
Tem-se
conhecimento do carrancudo coronel que costumava submeter jovens filhas de
empregados às suas bestialidades devassas; daquele outro que se comprazia em
mandar incendiar, como forma de ameaça e expulsão, o casebre de beira de
estrada do desvalido e pequeno proprietário; ou ainda do outro que forçava seus
empregados a deixar a maior parte do mísero salário na venda da própria
fazenda. Além de outras vergonhosas e aviltantes situações que indignavam e
enraiveciam o já eternamente sofrido sertanejo.
Desse
modo, se observa que a infame ação do poderoso diante do desvalido, isto sim,
teve o dom de provocar mágoas profundas e dilacerantes, e que mais tarde se
transformaram em revoltas e indignações, mas que, diante da situação de
submissão, foram sendo engolidas na secura do sol. Mas prontas para serem
vomitadas um dia, e com espasmos de enfrentamento, de luta. Contudo, tendo de
suportar a situação de subserviência, por muito tempo foi visto na mesma
qualidade de um bicho do mato ou de verdadeiro escravo.
O pior é
que na maioria das vezes dependia do poderoso para sobreviver, do próprio
carrasco para se manter em pé. Este era, a um só tempo, algoz e sustentáculo.
Roçando o latifúndio, pegando na enxada e na foice, coivarando para aprontar a
terra, juntando cavaco e tronco, amassando bicho brabo, vaqueirando boiadas,
acabava garantindo a esmola da sobrevivência. Já outros prestavam serviços ao
próprio senhor dono do mundo, pois atuando como serviçais e principalmente como
jagunços.
A
jagunçada nasceu dessa necessidade de proteção do poderoso senhor perante os
tantos males cometidos, da demonstração de poderio diante dos desafetos
igualmente portentosos, e como forma de incutir o medo e o temor em todos que
estivessem sob o seu mando. E até contra desconhecidos, como forma de
precaução. Na feição doentia do jagunço estava refletida a própria feição
coronelista; na sua arma, o desejo cego e impiedoso daquele que tudo fazia para
manter seu poder.
Verdade é
que as rixas e as intrigas entre poderosos faziam com que cada um procurasse manter
sua própria horda jaguncista. Sob as ordens do senhor dono do mundo estava o
sertanejo rude, empobrecido, sem expectativas, então transformado em jagunço,
em capanga, em pistoleiro, em matador de mando. E prestava serviço não só
contra os desafetos igualmente poderosos do seu patrão, mas também em situações
de menor monta, como matar um vizinho do latifúndio que não queria entregar de
mão beijada o pedacinho de terra que possuía.
Tantas
vezes o coronel ou um filho seu deflorava a mocinha pobre e depois, como forma
de calar a família revoltosa, mandava ameaçar todo mundo de morte. Fazia o
mesmo acaso soubesse que o sertanejo prestava favores a um inimigo seu ou
estava, de qualquer forma, fugindo às rédeas de suas imposições eleitoreiras,
fugindo do seu cabresto. Daí ordenar que o seu jagunço providenciasse a devida
maldade. E, por consequência, a violência, a morte, a assombração. E de
sertanejo contra sertanejo, de jagunço contra irmão de terra, pois igualmente
filhos da mesma situação de extrema penúria.
A
jagunçada do coronel possuía estratégia própria de ação, sendo a tocaia a mais
conhecida e utilizada naqueles ermos sertanejos. Tocaia ou emboscada, consistia
em escolher um ponto de passagem do desafeto do patrão e ali, entocado nas
moitas, escondido por trás dos arbustos, esperar a passagem do futuro defunto.
Então o “papo-amarelo” soltava estampido e fumaça e o cabra se estrebuchava no
chão. E, dependendo do caso, ainda recebia um tiro na testa, de misericórdia.
Os urubus rondavam a morte certa.
Foi essa
mesma classe jaguncista, somada a outros homens que se fizeram fortes e
perigosos sem precisar prestar serviço de matador, que mais tarde se voltou
contra o próprio coronel. E não só contra todo aquele patrão sádico e
escravocrata, mas também contra toda situação vergonhosa então existente. E
vergonhosa pela ação do estado opressor, pelas injustiças praticadas contra os
menos favorecidos, pela continuidade das mazelas sociais que tanto afligiam o
povo.
Desse
modo, os primeiros cangaceiros surgidos foram oriundos do próprio sistema
oligarca e de suas afluências. De certa forma, todos foram frutos da mesma
nefasta ação coronelista. O jagunço porque aprendeu a ser destemido lhe
prestando serviço; o sertanejo comum porque acabou vomitando as indignações engolidas
por tanto tempo. Mas em todos a mesma revolta pelo impiedoso mando, pela
desenfreada injustiça e pela miséria econômica e social se alastrando cada vez
mais.
Assim é
que se configurou a rebeldia primitiva, a primeira leva de homens que, sob o
comando de um cabra mais experiente ou atrevido, enveredou pelas caatingas e lá
fez seu posto de ação perante toda a região sertaneja, e para combater os
desmandos coronelistas, as vinganças pessoais e tudo aquilo que lhe parecesse
injusto de continuar acontecendo. Contudo, homens ignorantes e despreparados
para agir estrategicamente, e por isso mesmo tantas vezes exarcebando nas suas
ações e denegrindo a imagem de luta.
Contudo,
não tiveram estas mesmas características os cangaceiros surgidos em outros
tempos, em outros bandos, em outras vinditas. Continuavam amargando revoltas e
indignações; continuavam vivendo na pele, no bolso, no estômago e no saber as
mesmas mazelas que sempre caracterizaram a região nordestina mais empobrecida e
esquecida pelos governantes, mas já vivendo num contexto menos sombrio do ranço
feudalista do coronelismo.
Continua...
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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