Rangel Alves da
Costa*
Uma vez
fixado no bando, sentido o primeiro espinho rasgando a pele, ouvido o primeiro
zunido do fogo inimigo, outra vida não teria senão aquela. E que vida.
Desconhecer o cansaço, a doença, a fome e a sede para seguir cada vez mais
adiante por entre arvoredos cortantes, espinhos afiados, pedras talhantes e
animais peçonhentos, na fuga apressada pela sobrevivência. Buscar refúgio no
meio do mato ou no coito escondido, e ali dormir ao lado de mandacaru e
xiquexique, ouvindo assustado o zunido da natureza, com um olho aberto e o
outro fechado para que o de repente pudesse acontecer. Era a vida cangaceira.
Era também
vida cangaceira a comida no meio do tempo, a cantoria dolente debaixo da lua, o
proseado saudoso e desiludido, o namoro dentro das moitas, a espera do dia
seguinte, porém sem saber até quando teria o dia seguinte. E a vida da luta
intensa, da guerra desenfreada, dos repentinos confrontos, das armas pipocando
sedentas de sangue, dos gritos de dor, das correrias. E também do silêncio das
tantas mortes. Os corpos esquecidos no meio da refrega, dolorosamente deixados
na correria. Ou a sepultura em terra rasa, no chão ressequido, tendo por cima
uma cruz de galhagem de catingueira. E a vela da lua chorando seus mortos.
Raros eram
os momentos de descanso mais intenso, raros eram os instantes de alegria e
contentamento. Por isso que gostavam tanto quando deixavam as caatingas e
seguiam rumo às fazendas, povoações e cidades, ainda que sempre mais perigoso.
Seria muito arriscado, porém com outro mundo ao redor. Cangaceiro era cabra
apreciador da cantoria, do xaxado, da festança ao ronco do “pé-de-bode”, da
pinga boa e da fumaça do cigarro. Por isso que parecia estar noutro mundo
quando tinham oportunidade de sentir-se “gente”.
Raríssimos
eram os momentos assim, tudo acontecendo de surpresa e sem muito tempo para
aproveitar. E um instante ou outro de desconcentração não modificava o contínuo
estado de vigilância que deviam manter. Daí tudo ser tão angustiante,
apreensivo, inquietante e doloroso, pois no instante seguinte o fogo já podia
surgir adiante. Urge, então, indagar: Por que tantos filhos sertanejos optaram
por essa vida de imensos sacrifícios e infinitos sofrimentos?
As
respostas são difíceis, e certamente nunca estarão a contento com aquela
realidade. Contudo, algumas observações podem ser feitas para tentar
compreender como o sertanejo via o cangaço e como uma parcela optou por
enveredar nas suas fileiras. Mas tal compreensão nem precisaria analisar tais
aspectos em si, bastando procurar entender como era o sertanejo antes de se
tornar cangaceiro. Visualizada tal situação se torna mais fácil saber por que o
homem simples, violento ou não, rixoso ou vitimado, quase sempre jovem, muitas
vezes empobrecido, um dia resolveu deixar a liberdade do tempo para se tornar
prisioneiro da mata.
Mas como
era aquele sertão onde o cangaço vingou, enraizou e percorreu distâncias? Em
muitos aspectos, o mesmo sertão de hoje, sempre esquecido pelos governantes,
relegado às esmolas de qualquer dia, sempre marcado pelos períodos de estiagens
e secas prolongadas. Mas muito diferente noutros aspectos. A divisão social era
tão visível quanto a fartura do latifúndio e o prato vazio do miserável; a
justiça protegendo “os homens de bem” e a injustiça comandando as demais vidas;
a certeza de que nascer pobre era viver num mundo de desesperança e dor.
Nas
regiões mais afastadas, nas moradias distantes e esquecidas, a pobreza
verdadeiramente se afeiçoava ao bicho do mato. Vivia entocada, sedenta e
faminta, praticamente desconhecendo a realidade do mundo ao redor. Nos dias de
feira, acaso o sertanejo se bandeasse para as povoações de saco nas costas em
busca de adquirir qualquer coisa, logo tomava conhecimento daquela luta travada
entre os bandidos e os mocinhos, entre os cangaceiros e as volantes. E tantas
vezes já havia recebido a visita daqueles homens, já havia sido forçado a matar
e entregar a carne fresca da única criação que possuía.
Por todo
lugar não havia outro assunto que não aquela guerra sertaneja no meio do mato.
Um dizia que o bando de Lampião estava nos arredores, outro afirmava que a
polícia já estava no seu encalço; um defendia com unhas e dentes a luta
cangaceira, já outro afirmava não passar de um monte de assassinos. Mas tudo
radicalmente mudava quando, de repente, o Capitão e os seus cabras despontavam
pelo caminho empoeirado do lugarejo. Então todo ódio se transformava em
respeito e toda aceitação se transmudava em devoção. A maioria agia assim.
Havia medo
sim, o temor imperava, muita gente perdia a fala, desmaiava, se escondia
debaixo da cama ou simplesmente fugia desesperadamente pela janela ou porta dos
fundos, numa correria desembestada, sem destino, por cima de tudo que
encontrasse pela frente. Mas os que ficavam se sentiam verdadeiramente
maravilhados com tudo aquilo que avistavam, com todos aqueles homens com suas
vestimentas e armas, seus chapéus e seus brilhos dourados, seus olhos brilhando
e correndo de canto a outro. O medo, mas também o fascínio; o espanto, mas
também o deslumbramento. Não era só a fama, o ouvir dizer, mas a presença da
cangaceirada e o imenso arrebatamento que provocava entre todos.
Desse
modo, quisesse ou não, o bando de Lampião possuía indescritível atratividade
entre os sertanejos. Para muitos, os cangaceiros eram tidos, comentados e
avistados quase como seres míticos, de outro mundo. E se a ocasião lhes
permitisse presenciar sua passagem ou estadia, certamente que as marcas do
encanto se tornavam ainda maiores, ainda mais fortes. Daí que não é difícil perceber
a força atrativa que o bando de Lampião exerceu sobre o sertanejo.
Do mesmo
modo, e pelos motivos acima descritos, não é difícil compreender porque tantas
meninas e meninos verdadeiramente se apaixonaram por aquela vida errante. Os
meninos em busca de afirmação, de mostrar sua valentia, de experimentar outra
realidade, de sair daquela vida difícil e de empobrecimento. E, pela idade, sem
a exata consciência do que lhes esperava acaso fossem aceitos no bando.
As
meninas, por sua vez, talvez vissem os homens encourados, cabeludos e cheios de
adornos, como os atores novelescos da atualidade. Fascinadas, tomadas de
encantamento, ficavam desejosas de serem olhadas por algum daqueles príncipes
das caatingas. E quando se engraçavam e o cabra respondia o olhar, então não
havia família que pudesse esconder sua cria, não havia como evitar que
seguissem pelos caminhos da luta e do amor. Assim ocorreu nas povoações e nos
casebres distantes. Muitas das mulheres do cangaço saíram ainda meninas de suas
residências para se entregar aos braços quase sem tempo de amar.
O fascínio
provocado pelo jeito de ser e pela vida cangaceira foi o que permitiu a sua
existência por tanto tempo. Havia uma legião de meninos e meninas, sertanejos
de todos os tipos e motivações, querendo seguir o mesmo destino, desejosa de
entrar na mataria para servir ao grande Capitão. E quem seguiu jamais conseguiu
esquecer. Mas pelos motivos dolorosos que todos conhecem.
Mas os
bandos não eram formados apenas por fascinados e sonhadores, nem por jovens desiludidos
ou empobrecidos. Muitos entravam nos grupos por outras motivações. Tinham em
mente o que queriam, eram conscientes do que desejavam combater, conheciam a
realidade que desejavam transformar. Entretanto, talvez não soubessem da
impossibilidade de, apenas através das armas, mudar aquela realidade moldada
pelo poder.
Um
rapazinho de Poço Redondo, por exemplo, conhecido por Zé de Julião, era filho
de família abastada, era alfabetizado, casado, e se vendo diante de tanta
barbárie e atrocidades praticadas pelas forças policiais, de repente resolveu
entrar no bando de Lampião e com ele levou sua esposa. Verdade é que não
suportava mais ver a volante tirando à força a moeda do pobre, chantageando e
usando da violência a cada passo. Testemunhou, por diversas vezes, seu pai ser
extorquido por aqueles homens que diziam agir em nome da lei. Tudo isso
rebentou um dia. Tinha de fazer alguma coisa para combater aquela
situação. E assim se tornou cangaceiro.
Na caatinga foi apelidado de Cajazeira e a esposa continuou como Enedina.
Tal fato
demonstra que não era apenas o encantamento e o fascínio que acabavam
transformando meninos em cangaceiros, mas também a consciência de uma perversa
situação existente e que precisava ser combatida. Se não havia a voz da lei nem
da justiça, então que a luta cangaceira fosse meio de combater todos os
absurdos praticados contra o humilde e pacato povo sertanejo. E de lutas e
inglórias, eis a história.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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