Rangel Alves da
Costa*
É de
conhecimento generalizado que cangaceiro, ainda que diuturnamente convivendo
com as mais difíceis situações, era sujeito zeloso e vaidoso. Demasiadamente
cuidadoso com sua aparência, sim senhor. Tome-se como exemplo as vestes
vistosas, os adornos coloridos, os apetrechos cuidadosamente bordados e
costurados, sem falar no uso da brilhantina, do óleo de coco e dos perfumes e loções.
E dizem que até importados.
No anseio
de se mostrar ao mundo como pessoa de vida normal, feliz, contente, nos seus
afazeres cotidianos de repouso e retomada de energia, aceitou de bom grado que
o fotógrafo sírio-libanês Benjamin Abraão o registrasse quase que
artisticamente. Fazia poses, fingia estar atirando, era retratado
solitariamente ou em grupo. E nas fotografias um Lampião familiar ao lado de
sua Maria e seu cão; o líder lendo a missiva talvez de um coronel importante;
tomando conhecimento do prêmio de sua cabeça através de um jornal. Num dos
retratos, Virgulino folheia uma revista com modelo em traje de banho. E, sem
qualquer receio, mostra o que estava apreciando. E bem ao lado de sua Maria. Cangaceiro
era assim, quase um artista.
Na
verdade, cangaceiro era um espalhafatoso, gostava de aparecer, de causar uma
imediata e aparatosa impressão. Que o medo acaso causado fosse por outro
motivo, não pelo aspecto apresentado. As mãos que apertavam o gatilho para
matar, que puxavam o punhal para sangrar e para afastar os garranchos e pontas
de espinhos da caminhada, eram as mesmas mãos reluzentes dos anéis dourados se
enfileirando nos dedos.
E um jeito
assim vaidoso de ser não podia ser diferente quando se tratava do alimento. E é
inegável que todo mundo quer se fartar do melhor. Mas neste ponto tinha de
obedecer à fome e o que estivesse à disposição. O que não significa que
abdicasse da escolha do melhor que pudesse ser encontrado na região onde
estivesse de passagem ou de refúgio. Mas num sertão empobrecido, de pobreza
reinando perante a maioria da população, fortuna quando encontrava uma criação
ou uma mesa mais sortida.
Sertanejo,
conhecedor e apreciador da cozinha matuta, um guloso pelas misturas e pedaços
depreciados pelos sulistas, o cangaceiro só não comia do bom e do melhor se a
ocasião só permitisse se contentar com um naco de carne seca e um punhado de
farinha seca. E tantas vezes nem disso pôde dispor. Mas o seu intento era
sempre ter um prato de alumínio transbordante de feijão de carne com carne de
bode, só para citar uma das iguarias autenticamente nordestinas.
Apetitoso
no seu regabofe, costumeiro esvaziador de prato de estanho e de qualquer prato.
Mas, antes que esqueça, pelas bandas de cá nordestinas, ou sertanejas mesmo de
chão rachado de sol, chama-se regabofe o alimento que dá sustança ao cabra.
Pode ser uma buchada gorda de bode, um sarapatel apimentado, um mocotó
suculento, mas também a perna de preá assada ou até mesmo a carne de palma
refogada. Dependendo da fome e da situação, tudo é festança no bucho, na
barriga esfomeada.
Por isso
mesmo, todo esforço que se faça para citar quais os alimentos da mesa
cangaceira, necessário será que se aponte quatro situações ou momentos diferenciados
no seu regabofe, e tudo na dependência de onde e como estivesse. Porque a fome
existia sempre, e acrescida pelo esforço físico, ainda que sem tempo para comer
e ela ali judiando por dentro. Logicamente que o alimento colocado à disposição
do coito não era o mesmo que o apressadamente engolido na caminhada pelas
matarias.
Do mesmo
modo, diferente era a comida de coito e aquela encomendada às pressas nas
moradias sertanejas que fosse encontrando na caminhada. E mais diferente ainda
era o farto alimento encontrado quando recebido como ilustre e importante
visitante de um coronel ou outro poderoso qualquer. Quer dizer, o regabofe
variava segundo o local e a situação onde estivesse.
Assim, foi
dito que o alimento se diferenciava perante quatro situações. A primeira seria
aquela cotidiana, da vivência no bando, saboreada no calor da caminhada ou do
repouso na mataria; a segunda seria aquela servida com mais fartura, mais
aprimorada, colocada à disposição quando bando se acoitava por mais tempo em
determinado lugar; a terceira seria aquela encontrada pelas estradas, nas
moradias sertanejas onde batesse à porta e ordenasse o preparo de urgente
alimentação; e a quarta seria aquele regabofe mais faustoso, de lamber os
beiços e repetir o prato, vez que saboreado na condição de convidado ou de
ilustre visitante na residência de um portentoso senhor nordestino.
Continua...
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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