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segunda-feira, 9 de agosto de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 71

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 71

Rangel Alves da Costa*


Ester ficou tão profundamente desnorteada por haver sido desmascarada por Lucas que parecia ter sumido dali. Não esboçava uma palavra sequer, ficando com a cor estranha das pessoas que acabaram de ser desmoralizadas. Talvez desse toda a riqueza que tinha para desaparecer dali por magia. O olhar vago, sem brilho, não olhava nem nos olhos dele nem para lugar algum. Se pudesse enxergar por dentro veria que nunca havia sido tão absolutamente nada.
Sem se importar com o que ela estava sentindo ou não, ele continuou a falar, e agora muito mais seguro sobre o que ia dizer:
- Bastaria que você abrisse a boca e dissesse que eu estou mentindo ou inventando. Mas não faz isso porque não pode desacreditar minha certeza. Eu não inventei nada, não fiz presunções nem, como dizem por aí, joguei verde para colher maduro. De modo algum. Você mesma veio com essa proposta, veio com esse jogo de interesses para fazer disso aqui um palanque político para seu pai. E não somente isto, pois fez pior e agiu de modo muito feio para uma moça com a formação educacional que tem e com o conhecimento crítico de mundo que ao menos deveria ter. O que você propôs, Ester, foi praticamente uma prostituição política, uma coisa que eu jamais imaginaria que fosse capaz de dizer perante uma pessoa que um dia sentiu amor verdadeiro por você. Você parece estar também muito esquecida de algumas coisas. Se acaso a gente voltasse a namorar seria somente por uma consequencia lógica da vida, pois já fomos namorados e nunca, por assim dizer, terminamos pra valer. Apenas os outros se acharam no direito de acabar com o nosso relacionamento e pronto, nos separamos. O que é inadmissível é você chegar aqui de mansinho, fazendo promessas, ganhando a confiança do Padre Josefo e dos meninos, quando tudo não passava de um jogo de interesses, de um nefasto jogo politiqueiro. Tudo bem, pois seu pai é político e você tem que ajudá-lo mesmo, mas dentro dos limites da seriedade, da ética e sem atingir sua honra, pois ultrapassou todos os limites você afirmar que ainda pensa muito em mim, que ainda me ama, que podemos voltar a namorar, e depois atrelar o nosso namoro com a candidatura dele. Ora, Ester, que nome daria a isso senão prostituição política?
Ela apenas virou de costas, mas permaneceu ainda ali ouvindo tudo. Se Lucas tivesse o dom de vê-la do outro lado, agora enxergaria um brilho diferente nos olhos dela e um leve sorriso de escárnio, de zombaria, de menosprezo. Era a frieza em pessoa.
- Lembro bem que há poucos dias, ali mesmo dentro do barracão, o Padre Josefo a comparou com a Ester do livro bíblico. E dizia ele, coitado, sem imaginar essa verdade de agora, que, igual à bela rainha Ester, venceria os desafios mais difíceis para livrar seu povo da humilhação e do subjugo. A Ester bíblica foi colocada na vida do rei Assuero para substituir a esposa Vasti por uma interferência divina. Sendo judia, agindo no palácio como nova rainha, passaria a dar sua vida para mudar os planos do rei com relação ao seu povo. E assim o fez. E você, Ester, no palácio, que é aquele barracão, com o reconhecimento de uma verdadeira rainha, o que faria em nome do povo pobre e carente, cotidianamente humilhado pela política e pelos políticos? Teria coragem de algum dia dizer ao povo que não passava de uma porta-voz dos interesses políticos do seu pai. Vendo bem, diferentemente da rainha Ester, você está muito mais para Jezabel, aquela mesma descrita no Primeiro Livro dos Reis como manipuladora e inescrupulosa, traidora e pecadora. O Antigo Testamento mostra como ela era uma mulher corrupta, fazendo o povo de Israel adorar deuses pagãos e ainda induzir seu marido Acabe a tomar injustamente as terras de seus súditos. Há alguma aparência com você, Ester?
E esta, ainda de costas, enfim falou enquanto se retirava em direção ao seu carro:
- O mundo é dos mais espertos, meu caro Lucas. Não pense que esquecerei de suas palavras não. E de agora por diante saiba que se algum mal for feito contra você, mesmo que não tenha minhas mãos ordenando, haverá as minhas mesmas mãos aplaudindo. Quem nasceu para ser pequeno vai morrer como grão, pois os que pensam pequeno igual a você não devem ter melhor sorte na vida do que serem pisoteados pelos que têm o mundo. E passe bem... Ah!, antes que eu me esqueça e já que gosta tanto de comparações bíblicas: o Lucas de lá foi um curador e missionário de quinta categoria, quase um ninguém, como você é também.
A velocidade com que Ester saiu com o carro quase acaba atropelando algumas pessoas que vinham se reunir no barracão e na praça da cruz. Um senhor perguntou quem era aquela pessoa enlouquecida que dirigia o carro daquela maneira e Lucas simplesmente respondeu:
- Como o senhor bem disse, deve ser mesmo uma pessoa enlouquecida.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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