SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 30 de agosto de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 91

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 91

Rangel Alves da Costa*


Os problemas financeiros de Lucas começaram a surgir quando ele sentiu que tinha de vender uma das duas vacas que lhe restavam para manter-se por um período. As economias que havia guardado tinham ido embora sem que houvesse feito nenhum gasto desnecessário. Não era de luxos, não era desresgrado em nada, mantendo-se apenas com o essencial, comprando apenas o necessário, mas mesmo assim só lhe restavam alguns vinténs.
Deixar de procurar um emprego naquilo que gostava e sabia fazer, que era ensinar, para dedicar-se com exclusividade àquele sonho construído através do barracão, estava lhe custando muito sacrifício. Não podia cobrar um centavo sequer daquelas pessoas que faziam do barracão sua verdadeira escola. Eram pessoas muito mais pobres do que ele e talvez deixassem de frequentá-lo por vergonha de dizer que não tinham nada para oferecer ao menos como ajuda simbólica.
Não pediria um tostão à sua irmã Lúcia. Ela já havia sido boa demais ao fazer doação da parte que lhe cabia na herança e, através do seu esposo, continuava ajudando muito, pois o novo barracão estava sendo totalmente construído com o dinheiro que ele enviava.
Já estava comprovado por tudo que os comerciantes e empresários do lugar se negariam em ajudá-lo a manter aquela obra social. Os poucos que começaram a dar um pequeno apoio já haviam deixado de repassar qualquer ajuda financeira, sob a alegação de que as crises dificultavam poder continuar ajudando. Mas no fundo sabia o que os motivava, ou melhor, obrigava.
Consciente da decisão em vender um dos animais, no dia seguinte procuraria quem se dispusesse ao menos pagar o que a vaca leiteira realmente valesse. Mas não conseguiria fazer isso porque no meio da noite, enquanto ele dormia, entraram no terreno e depois no pequeno curral e sangraram até a morte as duas vacas que lhe restavam.
Logo cedinho, achando estranho que os animais não haviam berrado um só instante, se dirigiu até o curral e antes mesmo de entrar percebeu a cena com as duas vacas estiradas no chão em meio a poças de sangue. Com os chuviscos da manhã, o sangue havia se espalhado um pouco mais e misturado ao esterco produzia um cheiro fresco desagradável.
Mais desagradável ainda era o quadro desumano ali produzido pelas mãos da maldade: duas inocentes vidas animais pagando o preço da covardia, mortalmente perfuradas em várias partes do corpo. As focinheiras que estavam presas nas suas cabeças foram colocadas para sufocar os berros enquanto eram atacadas.
Dessa vez nem cogitou em prestar queixa nem avisar à policia sobre o ocorrido. Mas, como havia acontecido da outra vez, avisou aos moradores ao redor sobre o fato e permitiu que, se quisessem, aproveitassem toda aquela carne dos dois animais. E mais uma vez não deu para tanta gente querendo qualquer pedaço de carne.
Enquanto as pessoas cortavam os animais e distribuíam entre si a carne ali mesmo no curral, Lucas foi chamado na sua porta por dois policiais numa viatura da delegacia, acompanhados por mais duas pessoas dizendo-se da vigilância sanitária municipal e exigindo que mostrasse qualquer documento que lhe dava permissão para abater animais no próprio curral e não no matadouro municipal. Se não mostrasse no mesmo instante a tal documentação estaria configurado o crime de abate clandestino de animais, constatando-se o flagrante sobre o caso e passível de prisão.
No mesmo instante os policiais perguntaram se podiam dar voz de prisão em flagrante a Lucas e conduzi-lo algemado para a delegacia. Quando os fiscais, sorridentes e festivos, acenaram a cabeça afirmativamente, dizendo que sim, que poderiam, prendê-lo e os homens deram um passo em sua direção para atender às ordens, ao olharem nos seus olhos começaram a chorar convulsivamente. Retirando-se do local e afastando-se para os lados da casa, choravam de fazer as pessoas no curral ouvirem os prantos e se dirigirem até ali para saber do que se tratava.
Desconfiados e com medo daquelas pessoas sujas de sangue dos animais, os fiscais entraram rapidamente na viatura policial, totalmente atordoados e amedrontados, mas não sem antes forçar que os dois chorões entrassem na parte traseira do veículo, empreendendo depois uma desesperada fuga.
Os moradores não entenderam nada daquilo, apenas ficaram gargalhando com tripas e buchos nas mãos. Lucas achou melhor não comentar nada. Somente pediu que terminassem logo aquela divisão e limpassem a sujeira.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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